De Ferreira do Amaral à batalha de Passaleão

Expulsou os mandarins de Macau e acabou com o pagamento de tributos à China

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Foi em 1849 que Portugal ganhou a única batalha que opôs o nosso exército a forças militares da China.

Foi o combate de Passaleão, em represália pelo bárbaro assassínio do governador Ferreira do Amaral. Um herói politicamente incorrecto que ainda hoje incomoda os novos senhores de Macau, da EDP e dos vistos Gold…

João Maria Ferreira do Amaral (1804-1849), governador de Macau assassinado no desempenho das suas funções, é um herói esquecido do passado imperial português. Ignorado pelos livros de história na Metrópole, era admirado no posto avançado da civilização lusíada no Mar da China. Fizeram-lhe uma estátua que esteve durante décadas numa das praças principais do território – mas a folha de serviços que deixou e a maneira como morreu tornaram a sua memória politicamente incorrecta aos olhos das autoridades chinesas.

João_Maria_Ferreira_do_AmaralOs senhores de Pequim deram a entender que a retirada da estátua era uma condição para o início das negociações da transferência da soberania de Macau de Portugal para a China. Quando o governo português entregou a última parcela do império, a 19 de Dezembro de 1999, já não havia ali rasto da estátua. Foi trazida para Lisboa, onde está hoje no jardim de um bairro periférico.

Mas o que fez Ferreira do Amaral para agastar os chineses ao ponto de fazerem da sua memória um inimigo a abater, mesmo passado um século e meio sobre a sua morte? Apenas isto: mostrou um zelo pouco habitual na afirmação da autoridade e do prestígio de Portugal num momento em que o país lutava para manter a presença na região.

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estatua
Estátua em destaque no território de Macau

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Agora no jardim de um bairro periférico
Agora no jardim de um bairro periférico

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Concorrência inglesa

Em 1842, quatro anos antes da chegada de Ferreira do Amaral a Macau, a Inglaterra humilhou a China na primeira Guerra do Ópio e fundou a colónia de Hong Kong, do outro lado do delta do rio das Pérolas, a poucos quilómetros de distância da cidade onde os portugueses se tinham estabelecido desde o século XVI, com a anuência dos imperadores de Pequim. A presença inglesa transformou Hong Kong no porto mais importante do sul da China, atraindo navios, comerciantes e negócios. Portugal ressentiu-se da concorrência.

Para reforçar a presença nacional, o governo da rainha D. Maria II publicou um decreto de 1844 concedendo mais poderes ao governador do território, em detrimento do Leal Senado. No ano seguinte, Macau foi declarado porto franco. O território ganhou autonomia em relação à Índia, de cujo governo dependia desde o tempo dos vice-reis.

Afirmação de soberania

Já se esperava que as novas medidas provocassem a resistência dos interesses instalados, sobretudo chineses. Para as pôr em prática, o governo de Lisboa, liderado por Costa Cabral, nomeou um oficial de Marinha veterano da Guerra Civil, deputado por Angola nas Cortes: João Maria Ferreira do Amaral. “Eu respondo com a minha cabeça que hei-de cumprir tudo o que humanamente seja possível e me seja ordenado pelo Governo”, escreveu ele ao ministro da Marinha e Ultramar.

O novo governador chegou ao delta do rio das Pérolas em Abril de 1846. Para transformar Macau num porto franco começou logo a preparar a abolição das duas alfândegas existentes no território: uma portuguesa, cujos rendimentos financiavam a administração e os funcionários locais; e outra chinesa, gerida por mandarins enviados pelo governo de Cantão, que também exerciam autoridade sobre os chineses residentes em Macau.

Revolta abafada

Entre outras mudanças, Ferreira do Amaral lançou novos impostos (sobre portugueses e estrangeiros) e passou a cobrar uma taxa de uma pataca mensal aos barcos chineses. Além do descontentamento generalizado, novo governador foi desafiado por uma revolta armada. A 8 de Outubro de 1846, cerca de 1500 chineses, uns residentes no território, outros vindos da China em faitiões (embarcações ligeiras), marcharam desde o porto até à igreja de Santo António e dispararam sobre os 40 soldados que constituíam as forças da autoridade. Atacada, a tropa portuguesa respondeu – e abafou a revolta.

Para reforçar a segurança do território, Ferreira do Amaral mandou construir a fortaleza da ilha da Taipa e abrir uma estrada entre a Porta de Santo António e as Portas do Arco, cujo traçado obrigou a remover algumas sepulturas. Do ponto de vista chinês, estes actos foram outras tantas provocações do governador.

Mas Ferreira do Amaral foi ainda mais longe na afirmação da soberania lusíada. Em Março de 1849, mandou fechar a alfândega chinesa (Ho pu) e derrubou o pau da bandeira que simbolizava a autoridade do imperador. Como se isso não bastasse, expulsou os mandarins, acabou com o pagamento de tributos à China (incluindo o próprio aluguer de Macau) e aboliu o estatuto especial dos residentes chineses, colocando-os a todos sob a soberania portuguesa, com a obrigação de pagar impostos ao governo do território.

Estes gestos, juntamente com uma alegada atitude de desrespeito de alguns soldados portugueses para com as tradições chinesas, ao roubarem patos que estavam a ser usados como oferendas religiosas, acicatou os ódios.

Atentado nas Portas do Cerco

Ferreira do Amaral costumava dar todas as tardes um passeio a cavalo no limite da cidade. Apesar do ambiente tenso, continuou a fazê-lo. No dia 22 de Agosto de 1849 passou a fronteira, como era habitual, acompanhado apenas pelo seu ajudante, o tenente Jerónimo Pereira Leite. Ao regressar, pelas seis e meia da tarde, a escassas dezenas de metros das Portas do Cerco, foi cercado por seis chineses armados de taifós (espadas curtas). O cavalo assustou-se e deitou-o ao chão, onde acabou por ser morto.

Arco das portas do cerco
Arco das portas do cerco

Os assassinos – às ordens do vice-rei de Cantão, segundo constou na altura – cortaram-lhe a cabeça e levaram-na. Logo a seguir, cerca de 500 soldados chineses concentraram-se no vizinho forte de Pak Sa-lan (os portugueses chamavam-lhe Passaleão), com 20 peças de artilharia, e começaram a bombardear as Portas do Cerco.

O forte de Passaleão

Três dias depois, às ordens do Conselho de Governo que substituiu o governador assassinado, o segundo-tenente Vicente Nicolau de Almeida, macaense de origem, comandou uma força de 32 voluntários que atacou o forte e pôs em fuga a tropa chinesa. A batalha do Passaleão foi o primeiro e último combate entre o exército português e o chinês.

 Em Janeiro de 1850 as autoridades chinesas devolveram a cabeça de Ferreira do Amaral. Não faltou quem lembrasse as palavras do patriota assassinado: “Eu respondo com a minha cabeça.”