HUGO NAVARRO
António Costa muda de aliados e de inimigos dia sim, dia não. Bloco de Esquerda dissolve-se em querelas bizantinas numa liderança a seis. PCP agarra-se desesperadamente aos sindicatos e tenta instaurar clima soviético em vésperas de Natal. E grupelhos radicais sem qualquer expressão discutem “condições” para “aceitarem participar” num “futuro Governo”, como se vivessem na Lua ou em Marte. Está tudo doido.
Que a esquerda prefere a velha e relha “utopia” à simples e honesta realidade – já toda a gente sabe. O que os portugueses podem hoje confirmar é que esse delírio evasivo não tem limites no nosso País.
Perante uma Direita sem pesos-pesados na formação da opinião pública e com os órgãos de comunicação social transformados em simples microfone de quem se lembra de lançar umas bujardas, Portugal está à mercê dos ideólogos do radicalismo e de uma legião de aventureiros atrevidos para quem “quanto pior, melhor”. Os portugueses que se amolem.
As famosas sondagens, muitas vezes encomendadas por familiares, parceiros ou amigos de dirigentes da esquerda “bem pensante”, sobrepõem- se ao facto real e pretendem antecipar “a vitória” numas eleições legislativas que só decorrerão em Outubro do próximo ano.
E, no entanto, nunca a esquerda portuguesa esteve tão dividida ou se relevou tão tola e surreal como agora. À esquerda, só o PCP sabe o que quer, embora não esteja garantido que saiba para onde vai. E aquilo que os comunistas clássicos pretendem é simples: ganhar na gritaria de rua as “causas” que não têm poder para ganhar legitimamente no local apropriado, o Parlamento.
Uma dessas “causas” é o mais recente episódio de uma campanha crónica e cansativa contra “o grande capital imperialista”: a privatização da TAP (ler análise mais detalhada nas páginas 4-5 da edição impressa).
Consagrada desde há muitos anos em sucessivos programas de governo, esta privatização é dada como inevitável pela generalidade dos analistas: o Estado, simplesmente, não tem dinheiro para manter uma empresa em défice permanente e onde os sindicatos esquerdistas parecem mandar mais do que os administradores.
Manobrando habilmente, o PCP conseguiu juntar os doze sindicatos da empresa num propósito comum de greve para os dias cruciais entre o Natal e a passagem do ano. Entre os trabalhadores, os comunistas tentam instaurar um clima de coacção ideológica que pouco ou nada tem a ver com reivindicação laboral.
Os sovietes caíram na velha Rússia, mas pelos vistos reorganizam-se em Lisboa.
As tácticas da libelinha
Nada disto, porém, garante aos comunistas uma posição política em que tenha de ser ouvido ou considerado quanto ao futuro da esquerda: isolado no seu canto, entretido na sua própria guerra contra os fantasmas do “imperialismo”, o PCP arrisca-se a continuar a falar sozinho.
Isto porque o partido que Jerónimo de Sousa gostaria de ter como interlocutor, o PS, se transformou nos últimos tempos numa libelinha que não pára quieta e nunca se sabe onde vai pousar a seguir.
Aliás, os olhos das libelinhas, compostos por milhares de facetas receptoras, chegam a conseguir um ângulo de visão de 360 graus. E atendendo a que são predadoras e têm um apetite voraz por outros insectos, todo o cuidado é pouco…
Tomemos o exemplo da mesma TAP, cujo plano de greve foi desfeiteado por uma requisição civil que o PS agora contesta com voz grossa. Pois a verdade é que a primeira requisição civil na transportadora aérea nacional data de 1977 e foi decretada por… Mário Soares!
Os socialistas, que nunca se entenderam com o sindicalismo vermelho dominante na TAP, sempre foram dos mais acérrimos defensores da alienação da empresa. Tanto assim que, em 1997, era António Costa secretário de Estado num governo de António Guterres, o PS chegou a fazer uma campanha televisiva em favor da venda da TAP.
A privatização da TAP nunca deixou de figurar nos programas de governo do PS.
Já no tempo daquele primeiro-ministro socialista, natural da Covilhã, cujo nome António Costa prefere não pronunciar (e de quem o mesmo Costa foi braço direito, como ministro de Estado e da Administração Interna), a venda da transportadora foi claramente inscrita no memorando de entendimento com a troika, entidade que o PS tomou a iniciativa de chamar a dirigir os destinos de Portugal.
Agora, contudo, é o líder do mesmo PS a diabolizar a alienação da TAP, argumentando com uma metáfora de rigor nulo: a manutenção da transportadora na posse do Estado seria, segundo ele, “fundamental, pois na era da globalização tem a importância que as caravelas tiveram na era dos Descobrimentos”.
Independentemente do embuste barato que é comparar uma firma comercial com um projecto nacional de séculos, os chavões popularuchos de António Costa atingem o paradoxo quando sustenta que a TAP tem de continuar estatal, mesmo com largos milhões de prejuízo a serem debitados ao contribuinte, porque só assim continuará “ao serviço dos portugueses”. Ou o PS andou enganado nos últimos 40 anos, ou Costa já não sabe o que há-de dizer para aparecer na televisão…
Refém dos radicais
Mas a questão da privatização da TAP é apenas um dos muitos campos em que se manifesta a incoerência ziguezagueante do novo secretário-geral do PS – esse mesmo que esteve para avançar para a liderança em 29 de Janeiro de 2013 e deixou de estar em 30 de Janeiro, para voltar a estar um ano mais tarde.
A via sinuosa de António Costa passou a incluir, ao que parece, guinadas bruscas à esquerda e à direita que se arriscam a deixar enjoados os passageiros da carripana socialista.
Em Agosto de 2014, na moção de estratégia com que se apresentou às “primárias” do PS, Costa deixou o caminho aberto a quaisquer alianças de “interesse nacional”. Contudo, no último congresso partidário, em finais de Novembro, fechou a porta a acordos à direita e, na prática, anunciou a esquerdização do partido.
Para surpresa geral, na semana passada, num jantar natalício do Grupo Parlamentar do PS, Costa elogiou a forma como o Bloco Central lidou com o FMI – num louvor implícito à coligação PS-PSD que entre 1983 e 1985, sob a chefia de Soares, governou o País.
Ele bem se esforçou por “esclarecer” depois que se referia mais a Soares do que à coligação. Mas já se percebeu que aquilo que António Costa pretende é apenas chegar ao poleiro, em nome disto ou daquilo.
Ou não tivesse ele, na mesma semana, acalentado ilusões a Rui Tavares, do chamado “Livre”, e falado de “projecto estratégico comum” depois de um encontro com Passos Coelho.
Esta desconcertante via sinuosa, segundo alguns observadores, é propositada: destina-se a manter em aberto todos os cenários, pois apesar das sondagens Costa não está certo de uma vitória, nem sequer relativa.
Do que ele pode estar certo, em todo o caso, é de ter colocado o PS numa posição de refém dos grupos esquerdistas e radicais que o ajudaram a conquistar o poder no partido, de Mário Soares a Ferro Rodrigues, de Manuel Alegre a Ana Gomes.
Referendo
Todos eles falam hoje como se tivessem António Costa no bolso. Ana Gomes deu-se mesmo ao luxo de indicar publicamente com que outras forças políticas o PS poderia (ou não) procurar um acordo.
Fê-lo a propósito de um incómodo referendo que o sector mais moderado desejaria ver realizado no caso (cada vez mais provável) de os socialistas não obterem maioria absoluta nas próximas eleições.
O referendo não seria inédito: em Abril de 1983, após ter vencido as eleições com uma percentagem muito desconfortável, o então líder Mário Soares decidiu consultar o “povo socialista” em referendo: deveria o PS governar com o PSD, o CDS ou o PCP?
A esmagadora maioria pronunciou-se por uma aliança com os social-democratas, e assim Soares avançou para um Governo de Bloco Central com o PSD de Mota Pinto.
Agora, porém, os conselheiros esquerdistas de António Costa (incluindo o próprio Soares, de memória cada vez mais baça) não querem ver repetida a situação e afastam liminarmente a possibilidade de um referendo interno.
O raciocínio de Ana Gomes, então, raia os limites absolutos do decoro político. Diz a eurodeputada, no seu estilo habitual: “Qual referendo, qual quê? Qualquer acordo deve fazer-se numa base programática”. E define os limites: “Quem estiver ok, do PCP ao CDS, entra nesse acordo governamental ou parlamentar”.
Mas com uma “pequena” nuance: “Não o CDS de Portas ou o PSD de Passos Coelho: com esses, sem mudarem de liderança, é impensável”. Isto é: do largo espectro político entre o PCP e o CDS, o PS apenas poderá encontrar parceiro… no PCP!
Ares de “parceiro”
É neste quadro politicamente caótico que António Costa continua, nos intervalos, a namorar a esquerda mais radical.
O auto-proclamado “Livre” foi criado por Rui Tavares, que depois de ter sido eleito eurodeputado nas listas do Bloco de Esquerda, em 2009, roeu a corda e manteve-se em Estrasburgo mesmo depois de ter deixado o partido.
Não tendo conseguido lugar nas listas do PS no escrutínio seguinte, decidiu criar o seu próprio “movimento” e concorrer às eleições europeias de Maio passado, tendo obtido 70 mil votos – um oitavo do resultado do já de si minúsculo Bloco de Esquerda.
Dando-se ares de grande “parceiro”, o “Livre” já ousa emitir palpites sobre o futuro da governação em Portugal. Costa alimenta-lhe o Ego, participando em reuniões formais com o “Grupo de Contacto” (é esse o nome da direcção de 15 elementos criada por Tavares) e dando a entender que poderia estar ali a solução para a complexa política portuguesa.
Ninguém acredita, claro, excepto os incautos repórteres que transmitem a “notícia” nas televisões infantilizadas que massacram os portugueses à hora do jantar.
Já com o Bloco de Esquerda há mais cuidado, por parte do PS: não querendo ser visto em público com um partido em queda acelerada, Costa faz-se caro e adia “conversações”.
De nada lhe valeria, de resto, tentar entender-se com uma direcção bloquista repartida por seis cabeças e seis sentenças. Nem no jantar de Natal do Bloco, estando presente a meia dúzia de “líderes”, foi possível saber o que pensavam sobre o que quer que fosse: face ao perigo de todos eles falarem e revelarem, assim, a babilónia que por lá vai, reinou o sábio espírito natalício. E, à cautela, nenhum deles discursou…