Vitória na guerra e escândalo na corte

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Confirmado pelas Cortes de Lisboa de Janeiro de 1668, faz agora 347 anos, o golpe palaciano que afastou do poder D. Afonso VI não foi só uma questão política. D. Pedro II, o rei que obrigou a Espanha a reconhecer a Restauração na nossa independência, ficou com o trono e com a rainha.

Apesar de ter passado à história com o cognome de “o Vitorioso”, graças aos êxitos militares dos seus generais na Guerra da Restauração, D. Afonso VI (1643-1683) era incapaz para reinar. Vítima de meningite aos três anos, ficou para sempre diminuído física e mentalmente. Como o herdeiro do trono era o irmão mais velho, D. Teodósio, que morreu com apenas 19 anos, ainda em vida do pai, D. Afonso teve uma infância solta, envolvendo-se com plebeus e arruaceiros.

Já rei – desde 1656 –, continuou a participar em rixas nas ruas de Lisboa e levou para viver no palácio um companheiro, o italiano António Conti. A rainha-mãe D. Luísa de Gusmão acabou por embarcá-lo à força para o Brasil, gesto que viria a custar-lhe a regência, num golpe orquestrado pelo conde de Castelo Melhor, em 1662.

Apesar da juventude (tinha 26 anos), Castelo Melhor revelou-se um estadista competente. A sua política tornou possíveis os êxitos militares que deram a vitória a Portugal na Guerra da Restauração contra os espanhóis. Os grandes combates da guerra, que durou de 1640 a 1668, foram travados durante o reinado de D. Afonso VI.

A 14 de Janeiro de 1659, D. Sancho Manuel, depois conde de Vila Flor, venceu a batalha das Linhas de Elvas e o mesmo general derrotou o exército comandado por Don Juan de Áustria, filho de Filipe IV, a 8 de Julho de 1663. A 17 de Junho de 1665, o marquês de Marialva venceu a decisiva batalha dos Montes Claros.

Casamento diplomático

Um dos maiores sucessos diplomáticos do conde de Castelo Melhor foi o casamento do rei, mas a inépcia de D. Afonso acabou por ser fatal para o ministro. D. Maria Francisca, de 20 anos, queixou-se ao embaixador francês, o marquês de Saint Romain. Este começou a conspirar com o infante D. Pedro, que entretanto se zangara com o irmão e trocara a corte, em Lisboa, por Queluz.

O pretexto para o golpe palaciano foi uma conversa com um membro do governo, António de Sousa de Macedo, que a rainha considerou desrespeitosa. D. Maria Francisca exigiu ao marido que o demitisse imediatamente – mas Castelo Melhor defendeu o seu colaborador e o rei foi incapaz de contrariá-lo.

Esta prova de fraqueza desagradou a alguns membros da alta nobreza, incluindo o duque de Cadaval, o marquês de Marialva e o conde da Ericeira. Com esses apoios, D. Pedro dirigiu-se ao Paço da Ribeira e pressionou o irmão para que demitisse Castelo Melhor, a quem acusava de o querer matar. D. Afonso acabou por ceder. Em Setembro de 1667, Castelo Melhor partiu para o exílio.

A 15 de Novembro, a Câmara de Lisboa, que aderira à causa de D. Pedro, pediu a convocação de Cortes. A 21 desse mês, a rainha abandonou o palácio, acompanhada pelo seu confessor, o jesuíta francês François de Villes, que na mesma ocasião escreveu ao secretário da rainha, Louis Verjus, e ao embaixador de Luís XIV, Saint Roman, a dar-lhes conta do gesto de D. Maria Francisca.

A carta da rainha

“Não se agradou V. Majestade de mim, não é meu Marido, como V. Majestade bem sabe”, escreveu a rainha numa carta explosiva, deixada quando saiu do palácio real para se ir acolher junto das monjas clarissas do Convento da Esperança. A carta foi decisiva para a decisão dos juízes do tribunal eclesiástico que declararam D. Maria Francisca “no mesmo estado em que viera de França, como se não fora casada”.

Além da carta que deixou ao marido, a rainha escreveu no dia seguinte ao cabido da Sé de Lisboa, justificando-se: “Apartei-me de Sua Majestade que Deus guarde por não haver tido efeito o matrimónio em que nos concertámos por não poder sofrer por mais tempo os escrúpulos de minha consciência […] espero que Sua Majestade que Deus guarde como melhor testemunha o declare para me poder recolher livremente a França”.

A anulação do casamento do rei D. Afonso VI com D. Maria Francisca de Sabóia, pronunciada a 24 de Março de 1668, foi um dos maiores escândalos da nossa História, com a rainha a acusar publicamente o marido de ser impotente.

Perante o reconhecimento oficial da não consumação do casamento, por incapacidade de D. Afonso VI, ficou a rainha livre para casar com o cunhado, o infante D. Pedro, que acabara de destronar o irmão num golpe palaciano.

Filha do duque de Nemours e neta de um bastardo do rei Henrique IV de França, Maria Francisca de Sabóia (1646-1683), a quem chamavam na corte de Versalhes Mademoiselle d’Aumale, foi uma peça importante da diplomacia de Luís XIV em Portugal.

Em 1666 casou-se com D. Afonso VI, um matrimónio negociado à medida da ambição do conde de Castelo Melhor, que então governava o país desde que expulsara da regência a rainha-mãe D. Luísa de Gusmão, e entregara formalmente o poder ao jovem rei.

A conquista do poder por D. Pedro

Abandonado por todos, D. Afonso VI sofreu ainda mais uma humilhação por parte do marquês de Cascais, que lhe lançou à cara: “Senhor, vós nascestes tolo e o achaque que depois tivestes vos fez mais incapaz; sois doente e cheio de enfermidades, nem sois casado e assim estais incapaz de terdes geração, razões todas pelas quais hão-de vir os procuradores das Cortes e vos hão-de privar do reino e dar o governo a vosso irmão.

Tomai meu conselho que é de amigo velho: fazei por vossa vontade o que vos hão-de fazer quatro marotos: dai o governo a vosso irmão”. O rei hesitou até que o infante invadiu o paço à frente de um grupo de apoiantes.

O documento de “desistência” a favor de D. Pedro foi assinado a 22 de Novembro de 1667. O infante proclamou que aceitava tomar as rédeas do governo porque a isso se via obrigado, “quase com demonstrações de violência” por parte do melhor povo e da nobreza. As Cortes de Lisboa de Janeiro de 1668 confirmaram D. Pedro como regente do reino e propuseram-lhe que casasse com a rainha.

O afastamento entre D. Afonso VI e a mulher foi causa ou efeito da aproximação entre D. Pedro e D. Maria Francisca? Os historiadores que têm estudado o assunto chegaram a conclusões diferentes. Fonseca Benevides defende que, em 1667, “os amores do infante D. Pedro com a rainha sua cunhada haviam chegado ao maior escândalo”. Já Veríssimo Serrão sustenta que a versão dos “amores incestuosos” entre os cunhados “não resiste à menor crítica”.

Em sua opinião, o casamento obedeceu a uma “forte razão de Estado”, para evitar o regresso da rainha a França, a devolução do dote e as consequências desastrosas que uma ruptura diplomática com Luís XIV poderia trazer, numa altura em que o tratado paz com Espanha acabava de ser assinado.

D. Pedro e D. Maria Francisca casaram-se a 2 de Abril de 1668. Tiveram uma filha, D. Isabel Luísa (1669-1690), conhecida como a Sempre Noiva, por nunca ter chegado a casar.

D. Afonso VI foi enviado para Angra (actual Angra do Heroísmo), nos Açores, de onde regressou a Sintra, onde ficou preso num quarto do Palácio da Vila durante nove anos, até morrer, a 12 de Setembro de 1683. Só então o irmão passou a usar o título de rei. D. Maria Francisca sobreviveu três meses ao primeiro marido. Morreu a 27 de Dezembro do mesmo ano, depois de uma dolorosa agonia.