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Basta-me olhar para as pérolas no meu pescoço para me lembrar dessa minha bela crioula de porte magnífico. Mas, nestes dias em que Cuba volta a ser tema de notícias, não posso deixar de evocar Azucena de uma forma especial.
Para quem tenha lido “A Gaiola dos Periquitos” (que publiquei há um ano e meio), o nome soará familiar. E foi um ímpeto de nostalgia irremediável que me fez mergulhar nas gavetas de um velho móvel de estimação para calcorrear recordações e reencontrar as ultimas cartas que Azucena me enviou, já de idade muito avançada, mas escrevendo ainda sem óculos, como comentava orgulhosamente com aquela sua letra gorda, redonda, das professoras primárias de outros tempos.
Ao fim de todos estes anos, tanto o sobrescrito como as folhas de papel (de um salmão muito suave e elegantemente timbrado em relevo) preservam o perfume peculiar do bálsamo que ela própria preparava desde os anos de adolescência e descoberta e que detém propriedades únicas como cicatrizante, analgésico, calmante e outras de ordem menos trivial.
Dei comigo a emocionar-me quando percebi que se me colava a fragrância de Azucena, tanto e tão bem como se a tivesse acabado de abraçar.
Nessa penúltima carta, desabafa a tremendura de vazio para onde a viuvez a degredara e quase timidamente fala-me dos deslumbramentos dos seus amores bordados a tangos e a habaneras no bastidor de quase quarenta anos de vida em comum.
Lembra os seus sucessos no Tropicalia e rasga-se de comoção ao falar da enteada, a sua grande amiga Constança da Anunciação e das pérolas que esta lhe tinha oferecido no momento da primeira despedida, em 1937, e que desde então lhe empulseiravam o braço.
Não, já não passeava no Malecón, que sentia as pernas fracas e os seus quase noventa anos desfrutavam mais e melhor dos cadeirões. No entanto, guardava uma pequena esperança: não gostaria de morrer sem tornar a dançar um tango.
Sabia que já não seria a mesma coisa – menos pelas pernas do que pela alma. No entanto, podia sempre fechar os olhos da realidade e imaginar o seu Taylor ali com ela, naquele abraço feérico de todos os sentidos, trazendo Gardel e a felicidade de retorno à vida.
E a carta rematava com a grande revelação: sabia que assim que dançasse o seu último tango, Deus quereria que ela fosse ter com o seu Taylor, provavelmente, desejavelmente, possivelmente no dia do seu santo.
A última carta que recebi de Azucena está na gaveta de minha mesa de cabeceira e foi-me enviada pelo seu advogado. Tem a data de 26 de Maio e com ela me chegavam um longo colar de pérolas, uma caixinha de porcelana com o seu bálsamo e uma jóia de um bilhete: “Para que os uses com o mesmo amor.
Até sempre, Azucena”.