Luísa Venturini
Quando deu por ela, as ideias já se lhe desfiavam que nem contas de rosário e o olhar seguira um ponto de fuga qualquer, plasmado mais na véspera do que no dia seguinte.
“Talvez tivesse sido interessante entregar a bagagem, que nem lastro, a um guarda de gare e seguir rio acima, pela margem, na esperança de uma cerejeira florida onde aninhar a ansiedade e de uma tília frondosa onde acalmar a saudade. Talvez tivesse sido interessante ter combinado contigo um encontro naquele cruzar de estradas – a que ia de mim para ti e a que vinha de ti para mim – sabendo pressentidamente que o encontro era inevitável. Talvez tivesse sido interessante se tu tivesses deixado a tua bagagem noutro cais e viesses na simplicidade de seres apenas tu, entregue e despojado, de feliz naturalidade reencontrada, e eu tivesse estado de mãos tão abertas como um girassol ao meio-dia.
Os Gibrans da nossa juventude, os Andrades dos nossos enamoramentos e os Ferreiras das nossas paixões dar-nos-iam as palavras que nós, por nós, não saberíamos dizer.
Talvez tivesse sido interessante que esse encontro tivesse sido antecipado e a nossa pele não guardasse indisfarçáveis cicatrizes e iniludíveis desconfianças, tão aferradas na alma que nos correm pelas veias. Ou que a esperança ainda fosse a tal clareira iluminada onde sentar anseios e as nossas certezas, juvenis e ingénuas, fossem a seara onde colheríamos pão e alegria. Ou que os nossos olhares ainda fossem capazes de se encontrar para lá da linha do horizonte, magnânimo soberano dos seus domínios, temerário herói da suas conquistas.
Porém, a nossa história teve de ser outra, tão feita de empedrados e de jugos, de tanto baú e tanta lente, de tanto dogma e outro tanto equívoco, que sempre corremos o risco do desencontro, pelo tropeço que não se deu na livraria, pelo voo que se perdeu em Copenhaga, pelo jantar em casa do Carlos ao qual não se foi. E, no entanto, lá conseguimos dar um com o outro, apesar de tudo.
Há pouco, no prosaico jantar de família, talvez tivesse sido interessante que a tua cadeira não estivesse vazia, que eu não estivesse tão cansada, que o mais novo não chorasse à mesa e que as contas deste mês já estivessem pagas.
Passas por cá amanhã a buscar as tuas coisas e os miúdos vão passar o fim de semana contigo, em casa dos teus pais. Os nossos olhos já não conversam há tanto tempo que até as bocas se esqueceram de o fazer. E pensar que houve tempos em que trazíamos amores-perfeitos nas lapelas e que as pestanas eram cortinados para os nossos sóis. Não, não adianta. As coisas são como são. No entanto, não consigo deixar de pensar que talvez tivesse sido interessante…”