
De quando em quando acontecem-me estes momentos de constatação, francamente impiedosa, dos silvados que me atapetam a vida e é como se não houvesse fresta alguma por onde conseguisse escapar-me. Fico acocorada num canto, a engasgar-me de impaciência e não vale nem a pena sermonear-me com sensatezes salomónicas, porque nestas ocasiões a saturação é tanta que até ao Salomão mando às urtigas, e bem posso tentar sacudir os espinhos que eles, alheados, teimam em afincar-se à minha pele.
Hoje estava eu num desses dias avinagrados em que talvez devesse andar com um espanta-espíritos dependurado na cabeça ou, menos espaventosamente, fazer um intervalo e ir dormir, na esperança de que o acordar me trouxesse um outro, melhor, mundo.
Mas como não podia deixar de ser, é claro que não fiz nada disso e que, com uma ventania a arejar-me a cabeça, fui buscar uns óculos lavados à gaveta, daqueles que trazem uma corzinha colada às lentes, e vestir uma saia bem rodada e florida, com bolsos dos grandes, onde posso guardar segredos e tesouros.
Talvez por coincidência, acaso, ou outra qualquer conspiração, eis que se me abracadabra uma porta recheada de sorrisos frescos, acabadinhos de colher, e um par de mãos, abertas que nem asas, me acolhe e perlimpimpimpa as silvas e os vinagres, transformando-os numas belas pratadas de doces, tão sinceros quanto primaveris.
De repente, já estou a cantarolar as palavras do Régio, debruço-me à varanda daquela bela janela, lambuzo-me sem reticências com uma travessa de leite-creme e tenho criancices tais, tais e tantas, que bom será ter pudor de as contar seja a quem for.
Nos bolsos grandes da minha saia rodada e florida trago sons de Cuba, gargalhadas de crianças e rendas de família. No laçarote que trago no coração, hoje acrescentei um bordado novo, todo feito a ponto pé-de-flor.
(Ah! E reparei, quando cheguei a casa, que já não trazia os óculos…)