A Taxa Feudal de Lisboa

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Manuel Silveira da Cunha

No feudalismo os senhores locais impunham taxas, impostos, portagens, direitos de passagem e derramas. Os impostos eram sobre bens e pessoas, eram sobre produção e venda e sobre os transportes. Eram discricionários e impostos, daí o nome, pelos esbirros e homens de armas do Barão, Conde, Duque ou Marquês. O Rei dava de privilégio os rendimentos de grandes regiões aos homens da sua confiança que levantavam lanças, homens de armas, a cavalo e a pé, e o ajudavam a defender o reino dos múltiplos inimigos. Outras vezes esses privilégios eram concedidos por razões religiosas, às respectivas ordens, cuja administração era muito mais branda, inteligente e humanista. Os rendimentos, neste último caso, eram canalizados para o serviço de Deus, que é o serviço dos homens, havia recolha de viajantes, hospitais e escolas. A Universidade de Évora, jesuíta evidentemente, tinha vastas terras que lhe serviam de rendimento. Em ambos os sistemas houve abusos, muitas vezes o dinheiro era despendido na ostentação mas, em geral, o sistema religioso era bem mais fiável e justo, nunca entrando em falência ou bancarrota, ao contrário do sistema governado pelos nobres, que dependia em muito maior escala do discernimento e bom governo de cada senhor em particular.

Não é de estranhar que o povo preferisse o sistema religioso, nunca ou quase nunca se revoltando ou peticionando ao Rei pelo alívio do jugo feudal, ao contrário daqueles que se encontravam debaixo da alçada daqueles que usavam os homens simples como formas únicas e exclusivas de obter rendimentos. Quem não pagava impostos, outras taxas e portagens era severamente punido, sovado e poderia perder todos os bens se não a própria vida.

Hoje em dia, infelizmente, parece que regressámos ao sistema feudal senhorial. Vejamos a Câmara de Lisboa. Um senhor, o presidente da Câmara, não eleito, um fulano que ninguém conhecia, subiu à boleia do Costa e herdou o lugar. O primeiro exemplo de um feudalismo hereditário que em Portugal nunca aconteceu em grande escala, pois o Rei teria sempre de reformular em cada geração os direitos feudais. O senhor anónimo que agora é comentador numa televisão, para lhe dar palco e passar a ser conhecido, onde não se destaca da turba multa de comentadores, uma infinidade não-contável de gente que passa pelas televisões, tem uma estrutura gigantesca eivada de corrupção, uma estrutura construída por gerações de “boys” camada sobre camada, vício sobre vício, desde o 25 de Abril de 1974.

Os impostos e taxas recaem arbitrariamente sobre o povo, exactamente como no feudalismo, impostos ao sabor, gosto, capricho ou vontade dos senhores feudais que governam as câmaras. No caso da Câmara de Lisboa a monstruosidade é flagrante, acabam falsamente com a taxa de esgoto, agora incorporada na conta da água, e inventam uma nova taxa para pagar o que sempre foi ónus do orçamento de Estado e dos serviços públicos da Câmara, uma taxa de Protecção Civil, indexada ao valor dos imóveis; esta taxa é mais um complemento do Imposto Municipal sobre Imóveis, e um acrescento à taxa de esgotos. O mais revoltante destas taxas é que estas correspondem a deveres obrigatórios da Câmara. Do modo que as coisas estão, dir-se-ia que existe um sistema feudal criado para sustentar todos os vícios e ostentação dos sobas, mandarins e mandarinetes dependentes do senhor feudal máximo, o tal anónimo presidente que herdou o lugar. Quem não pagar ver-se-á sujeito a coimas, juros de mora, penhoras e arrestos, mais ou menos como nos tempos do feudalismo senhorial.

O que é triste nisto tudo é ver a carneirada lisboeta, maioritariamente de classe média, a votar nestes cavalheiros ou noutros da mesma igualha e não juntar umas forquilhas, uns varapaus e uns archotes e correr com o bando todo dali para fora, os milhares de “boys” e “girls” que lá se foram instalando ao longo dos anos. Tal como em Lisboa, por todo o país se repete este regabofe. Os serviços que servem realmente os munícipes poderiam ser feitos por vinte por cento dos funcionários, assessores, adjuntos, secretários e motoristas, o resto serve apenas a si próprio e às clientelas partidárias que se vão sucedendo sem nunca limparem a casa dos anteriores que lá foram metidos para sempre.

Servirá esta taxa para construir um novo quartel de bombeiros para substituir o da Luz, caríssimo, moderníssimo, desenhado pelo vereador Salgado, e que vai ser sacrificado à sanha empresarial do grupo Espírito Santo Saúde? Fica a pergunta e a taxa que, se não é ilegal, é imoral, iníqua e feudal. Será que daqui a dois anos será incorporada na conta da água, como a dos esgotos, para se inventar uma nova e assim por diante? Virá aí a taxa da pavimentação? A dos passeios? A dos fiscais corruptos? A taxa de gasóleo para os carros dos assessores? A taxa das escolas? A taxa das inundações? A taxa dos Santos populares? A taxa da EGEAC? A taxa dos cemitérios? A taxa dos mercados? A taxa dos carris dos eléctricos? A taxa da iluminação pública? O real de água? Até quando a passividade dos lisboetas perante a iniquidade?