Como seria de esperar, os duzentos anos da independência do Brasil têm propiciado uma série de reflexões sobre o passado, o presente e o futuro desse imenso país, em muitos casos na sua relação com Portugal.
Sem surpresa, verificamos que há algumas vozes no Brasil que ainda não superaram a tentação freudiana de “matar o pai” – neste caso, Portugal. Como se o Brasil se tivesse criado “apesar de Portugal”. Podemos até compreender essa tentação freudiana – comparativamente, o Brasil é ainda um país adolescente. Mas já vai sendo tempo de o Brasil superar essa tentação e de assumir, sem complexos, toda a sua história.
De facto, Portugal não descobriu o Brasil. Qualquer país – para mais, um país imenso como o Brasil – é muito mais do que um território. É um território habitado por um povo que reflecte, na sua vivência desse território, uma língua, uma cultura, uma civilização. O que só de forma muito incipiente acontecia quando Pedro Álvares Cabral fez a sua viagem.
Podemos pois assim dizer que Portugal não descobriu o Brasil – pela simples mas suficiente razão de que o Brasil não existia antes dos portugueses lá terem chegado. Muito mais do que isso, o que devemos dizer é que Portugal criou o Brasil – no plano linguístico, cultural e civilizacional –, naturalmente que com o contributo das comunidades indígenas (que, por si só, não formavam um povo, tal a sua dispersão geográfica e dialectal) e de todas as outras comunidades que, século após século, fizeram do Brasil o seu país.
O facto de alguns brasileiros (e também de alguns portugueses, por arrasto) terem ainda relutância em reconhecer a verdade histórica não produz, por si só, uma “verdade alternativa”. Sim, é certo que a história podia ter sido diferente – e há brasileiros que, retrospectivamente, desejavam uma outra colonização. Lamentamos desiludir: se o Brasil tivesse sido colonizado pelos espanhóis, o mais provável era que se tivesse fragmentado em vários países, como aconteceu em toda a restante América Latina. Ou seja, o Brasil não existiria.
Se, por outro lado, o Brasil tivesse sido tomado pelos neerlandeses, como esteve para acontecer, provavelmente teríamos hoje um país mais desenvolvido no plano económico – mas à custa de tudo o mais, como aconteceu na África do Sul, com o sistema do “Apartheid” (o que importa recordar, particularmente àqueles que tanto demonizam o modelo português da miscigenação). Custa pois, duzentos anos após a independência do Brasil, ouvir ainda algumas vozes a não reconhecerem a matriz lusófona deste imenso país. Sendo que, duzentos anos após a sua independência, a responsabilidade pelo estado do Brasil é, toda ela, dos brasileiros. Também já vai sendo tempo de reconhecer isso.
Imagine-se que Portugal ainda hoje, por exemplo, se queixava do Império Romano. Sim, também é verdade que os romanos invadiram este território a que hoje damos o nome de Portugal. Dado o desfasamento qualitativo no plano linguístico, cultural e civilizacional em relação às comunidades que por cá habitavam, naturalmente que assumiram uma hegemonia política quase que absoluta na época. Entretanto, porém – e eis aqui toda a diferença –, nós já assumimos há muito essa herança. Porque só assim – assumindo o passado –, há, tanto no plano pessoal como colectivo, real futuro. ■
Agenda MIL – 10 de Setembro, 15h: Fórum Cidadania, Cultura e Património (Famalicão: Museu da Indústria Têxtil da Bacia do Ave); 15 de Setembro, 14h30: Colóquio «Pinharanda Gomes: historiador do pensamento português» (Lisboa: Biblioteca Nacional).