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VASCO CALLIXTO

Se há povoações que o considerado progresso do último meio século transformou radicalmente, a populosa vizinha de Lisboa que há pouco mais de cem anos se chama Amadora deverá ser o expoente máximo desse progresso, bem desordenado. 

Quem conhece apenas a Amadora de hoje, não faz a menor ideia de como era a Amadora de ontem. Contam-se pelos dedos os testemunhos que venceram o tempo; há ruas e áreas inteiras onde o passado desapareceu por completo. E, infelizmente, com a população sucedeu o mesmo. A escassa população de ontem não se encontra, já não se conhece; só se vê… quem nunca se viu! E uns tantos amadorenses, por nascimento ou por adopção, que um dia deixaram a Amadora, voltaram-lhe as costas, como se não tivessem ali vivido, namorado, casado e visto crescer os seus filhos.

A Amadora, acolhedora e familiar, nasceu no período que antecedeu a primeira guerra mundial e consolidou-se nas décadas de entre vinte e quarenta. A Liga de Melhoramentos da Amadora, os Recreios Desportivos da Amadora e o Grupo de Esquadrilhas de Aviação República “fizeram” a Amadora que todo o país conheceu, uma povoação que se tornou freguesia em 1916 e foi elevada à categoria de vila em 1937, quando registou a presença do Presidente Carmona nas cerimónias e na inauguração de um jardim-parque no centro da progressiva localidade.

Até então, quantas e quantas famílias se fixaram na Amadora! Foram essas famílias que “encheram” a Amadora de belas moradias e de alguns prédios de primeiro e segundo andar, famílias que se encontravam no salão de cinema e no ringue de patinagem dos “Recreios”, bem como no aeródromo, que recebia multidões por ocasião dos eventos aeronáuticos que ali tinham lugar, eventos que levavam o nome da Amadora a todo o mundo.

O descalabro urbanístico veio depois, nos anos cinquenta e sessenta, quando se consentiu que quarteirões inteiros, não só na área central da vila como em toda a parte, fossem demolidos, para aí se construírem incaracterísticos prédios de bom rendimento. Uns tantos, dos que tinham “feito” a “outra” Amadora, já não pertenciam ao número dos vivos e essa “outra” Amadora morreu com eles.

Quem lhes sucedeu era outra geração, divorciada de bairrismos antigos, incapaz de resistir à “lei da picareta” e ao futuro melhor que procuravam noutros lugares. No entanto, em 1973, ainda foi possível reunir na Amadora cerca de quatro centenas de saudosistas da Amadora de ontem, numa memorável reunião de “velha guarda” que foi larga notícia na imprensa de Lisboa e não só; veio gente de toda a parte. Congratulo-me por ter tido essa iniciativa, renovada há seis anos com uma muito pálida nova edição, que, mesmo assim, proporcionou encontros de octogenários e octogenárias, outrora rapazes e raparigas dos anos quarenta, quando eles andavam de “calças à golfe” e elas usavam tranças. E havia ainda quem fosse passar uns dias à Amadora. Hoje, sem dúvida, pelo menos para o signatário, é salutar o contacto com quem foi colega na escola primária.

Quando da “libertação” de Oeiras e a criação do concelho da Amadora, em 1979, com a elevação à categoria de cidade, o pior dos males urbanísticos já estava feito. Mas podia ter-se evitado o prosseguimento. Bem mais valia uma Amadora-vila (como Sintra, Cascais e Oeiras) com menor população, do que uma cidade de população maior e indiferente que, na generalidade, desconhece o passado da terra onde vive. Os exemplos não faltam, como o de uma directora de escola que não sabe (nem, portanto, dá a saber aos alunos) que da Amadora descolaram aviões para as cinco partes do mundo. O projectado monumento aos Pioneiros da Aviação, que a Amadora podia mostrar a toda a gente, não passou da primeira pedra. Outra “coisa” que se ergueu, onde ninguém vê, nada tem de pioneirismo.

Tenho memórias de estudante

E dos tempos da mocidade,

Vividos numa Amadora distante,

Bem longe desta minha quarta idade.