Abeira-te aqui, que hoje não estou em dia de mastigar sozinha os meus desajustes. O tempo (tão bom ter assim à mão uma quase imaterialidade de costas largas) anda a bulir comigo.
Alheia às angústias com que me encharca o ar e a alma, a trovoada estrepita e ribomba impavidamente neste pedaço de céu. Uma paz muito azul destaca-se ali defronte, num daqueles acenos que a Natureza tão bem conhece e que nos diz “Isto também passará”, como na história do anel do rei.
O dia fez-me recordar uma bela varanda numa bela janela, onde, há já uns bons pares de anos, assistíamos ao esplendor rasgado do céu em noites de invernia, como quem se oferece um primeiro balcão numa ante-estreia. Mas, deixando o espectáculo magnífico fora destas cogitações, o certo é que tanta electricidade no ar interfere com o meu sistema nervoso, belisca-me a sensibilidade, provoca-me sinapses dispensáveis, desagradáveis mesmo. No fundo, ressinto-me como um cão ou um gato, o que talvez me faça olhar mais humildemente para esses convivas do meu pequeno universo e repetir, tão mantricamente quanto possível, “isto também passará”.
É nestas alturas que parece que uma tremenda lente se impõe entre mim e a vida e tudo me surge numa dimensão olímpica – é isso mesmo: estúpida e dramaticamente citius, altius, fortius – vendo dos dias apenas os socalcos da frustração ou do fracasso. A objectividade, o distanciamento, o tratamento asséptico das emoções, a ponderação das ideias? Tudo parece esvair-se pelo ralo negro de um caos irremissível, onde me atordoo na busca inglória em que, fatalmente, só alcançarei perder-me, sem Florbela Espanca que me valha.
Também entendo que não faria muita falta dizer-te isto, não a ti, que sabes tão bem quanto eu como só me lembro da Florbela nessas alturas e que, passada a rezinguice e ultrapassado o curto-circuito, a lente esmifra-se como por encanto e volto a saber de proporções e Regras de Ouro, a namorar com os filhos de Da Vinci e de Rumi e a ser, claro está, bem menos tenebrosa.
Sabes? Sei que sabes, mas gosto de repetir-to: É bom ter-te, por todas as razões e por mais essa, a de me seres como um anel sempre presente, como um pedaço muito meu de céu azul que me vai recordando uma e outra vez, uma e outra vez, “Isto também passará”.