Mendel dos Livros e o Mundo de Ontem

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Um mundo que desabou

PAULO FERRENO

Nunca percebi muito bem como é que alguém é capaz de queimar livros. É verdade que existem alguns que, de tão maus, nos provocam calafrios, mas daí à queima vai um passo de gigante. Talvez a censura possa ser uma solução, pois há que reconhecer a necessidade de preservar o espírito. E se existem tantas disposições relativas à qualidade do que ingerimos para o físico, porque não para a mente? Apenas a gasta noção de liberdade, actualmente tão incompreendida e abusada, pode justificar a não-existência de uma apreciação prévia ao que se lança cá para fora, em termos editoriais. Evidentemente, o problema passaria então a residir em quem seria capacitado para realizar tamanho exercício. Por isso, adiante.

O mundo de ontem“O Mundo de Ontem” é uma reflexão autobiográfica de um homem que viu o passado brilhante, que conheceu o fulgor de Viena, que privou com os grandes da cultura e que, depois, conheceu a barbárie, assistiu ao desmoronar da velha Europa, às desgraças da Primeira Guerra Mundial e do tempo que lhe sucedeu. É um relato de um continente que era o farol do mundo e que, sem perceber bem como, de um dia para o outro descambou irremediavelmente. Passa por aqui, ao lermos, “a intratável melancolia que se apodera de quem recorda tempos felizes”, no dizer de Ernst Jünger, uma melancolia de quem sabe que tempos semelhantes não poderão retornar. Stefan Zweig conheceu o apogeu da Europa, assistiu ao seu progressivo desabamento, foi crente no possível renascimento que os anos vinte, a certa altura, ainda pareciam anunciar, mas depressa a década seguinte lhe mostrou a vacuidade de tal crença.

Educado e criado numa monarquia dual que conhecia a estabilidade, pautada embora por algumas crises de crescimento, Stefan Zweig retrata uma sociedade estável, onde cada um sabia qual o seu lugar (por vezes de forma cruel, como no caso de Francisco Fernando e esposa, aos quais o protocolo imperial nunca deixou e sossego) mas onde, mesmo assim, havia lugar para a mobilidade social e para a ascensão (de que é exemplo o próprio pai do autor). Uma sociedade vibrante, do ponto de vista cultural e social, onde conviviam onze nacionalidades diferentes, à sombra tutelar do Imperador. E, em quatro anos, tudo se desfez. Como outros, Stefan Zweig lá foi cumprindo obrigações militares, enquanto continuava a escrever, e depois da queda viu-se obrigado a orientar-se mental e MendelDosLivrosgeograficamente num novo país, ao qual não se augurava grande futuro, sobretudo depois de amputado da sua força industrial, que residia na Boémia, agora tornada independente e presa de uma inflação assustadora. Por entre viagens, edições, cartas, leituras, assim se foram os anos vinte. Os trinta são os da ascensão dos tais rapazes que queimaram os livros do nosso homem, que lhes conheceu a ascensão de perto, pois viveu-a em Salzburgo. Viria depois o exílio, a passagem para a Grã-Bretanha e para a América, numa jornada que terminaria no Brasil, no Novo Mundo, referência simbólica para quem tanto deixara e perdera no Velho.

“Mendel dos Livros” é uma história de amor aos livros, uma pequena novela centrada na vida de um judeu que os compra e vende, e assim passa mais de vinte anos numa mesa de café, da qual faz escritório. A Guerra, sempre ela, destruirá a sua vida e o seu amor. Passa por aqui o velho culto judaico do conhecimento e do estudo, da leitura e da hermenêutica, incompreensível para bárbaros, novos ou velhos, que não conseguem compreender a alegria que teve Kepler, no meio de uma vida desgraçada, ao ter acesso aos documentos de Tycho Brahe.