O DIABO entrevistou Luís Mira, secretário-geral da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP), para conhecer mais sobre a situação da agricultura nacional, bem como os desafios que ela enfrenta. Licenciado em Engenharia Zootécnica, Luís Mira, de 53 anos, é administrador do Centro Nacional de Exposições (Santarém) e do Instituto de Emprego e Formação Profissional e representa a CAP no Grupo Consultivo Estruturas Agrícolas e Desenvolvimento Rural da União Europeia. É ainda membro do Conselho Económico e Social e do Conselho Económico e Social Europeu.
- Qual é a situação actual do mundo agrícola em Portugal?
Em Portugal, como em todo o mundo, começa-se a notar os efeitos das alterações climáticas. Na CAP organizámos o ano passado, com o professor Filipe Eduardo Santos, uma conferência sobre o impacto das alterações climáticas no sector agrícola e ele veio aqui dizer que daqui a 50 anos as temperaturas que hoje existem em Beja existirão em Braga, mas que a chuva será a mesma.
- As alterações climáticas são, portanto, uma ameaça para a agricultura nacional?
Nessa conferência encontrava-se um agricultor que tinha o registo das datas de início de vindima, e em 12 anos teve de a antecipar um total de 20 dias. Em Portugal a chuva é cada vez mais escassa, e quando aparece é em quantidades muito intensas. Ou seja, não é distribuída ao longo do tempo, que é o que interessava aos agricultores. Quando vêm aquelas grandes enxurradas, elas arrasam o solo e fazem mais estragos do que outra coisa qualquer. Diga-se que hoje a solução para que um agricultor não tenha dificuldades é o regadio.
- Em relação ao plano nacional de regadio, quais são as lacunas que existem em Portugal?
Todos conhecem a barragem do Alqueva, que são 120 mil hectares de regadio, e ainda temos mais 330 mil hectares de regadio em Portugal, mas o País tem mais de 3 milhões de hectares de superfície agrícola, logo ainda falta fazer muito.
- Então são necessárias mais infra-estruturas como o Alqueva?
Uma obra como o Alqueva muda a economia de uma região. É preciso fazer mais obras, sejam elas privadas ou públicas, para podemos ter regadio nos próximos anos de forma a conseguir produzir com as exigências que os consumidores europeus têm. Isto sempre numa perspectiva de sustentabilidade, numa perspectiva que permita não danificar o solo, pois um agricultor não quer fazer isso, senão os seus filhos não podem ser agricultores.
- Isso levanta a questão do ambientalismo, que por vezes é um pouco extremista e entra em conflito com as necessidades da indústria agrícola.
Radicalismo há em todas as situações. No entanto, dados concretos: da superfície do planeta só 3,2 por cento é que é superfície agrícola útil. O resto são oceanos, desertos, estepes, tudo áreas sem capacidade agrícola. E é necessário aumentar a produção de alimentos em 70 por cento até 2050, quando se prevê que a população mundial atinja 9 mil milhões de pessoas. Temos que aprender a viver e a produzir com o que temos.
- Mas hoje cada vez menos pessoas são agricultores…
Na Europa há 500 milhões de habitantes, e entre dois a três por cento são agricultores. São 11 milhões de agricultores, e esses 11 milhões alimentam os 500 milhões. No início do século um agricultor alimentava 7 pessoas, nos anos 50 um agricultor alimentava 50 pessoas, e hoje um agricultor alimenta 150 pessoas. Sim, há menos agricultores, mas eles têm uma capacidade produtiva maior.
- De que forma é que essa evolução tecnológica já mudou a actividade agrícola?
Hoje temos a agricultura digital, que permite gerir um campo grande como se se estivesse a tratar de uma horta. Temos um conjunto de equipamentos de base informática que detectam as necessidades e reagem de acordo com elas. Até agora a solução era pôr adubo de forma igual em todo o campo, mas hoje o computador diz para colocar mais aqui e menos ali. Já não se rega de forma a encharcar: hoje tenho um sensor, sei quais são as necessidades da planta, logo defino a rega para esses litros de água. Isto é a agricultura dos dias de hoje, em que temos um conhecimento e mecanismos tecnológicos que permitem dar à planta aquilo que ela precisa.
- Houve, portanto, uma grande mecanização.
Não só, acho que passámos da mecanização para a robotização e para a digitalização. A mecanização foi nos últimos 20, 30 anos, e hoje já estamos para lá disso. Hoje a questão são satélites, bases de dados, e como se gere toda esse volume brutal de informação.
- A agricultura portuguesa está pronta para competir com a agricultura europeia?
Nunca poderemos competir pela quantidade. Temos grandes condições e capacidades nos produtos mediterrânicos, vinhos, azeites, tomates, etc. Temos ganho os melhores prémios mundiais de vinho, temos uma capacidade muito grande de apresentar produtos diferentes dos outros países. Vê-se que os vinhos portugueses são altamente conceituados nos mercados mais exigentes.
- Bem como o azeite…
Também temos um azeite de muita qualidade. Mas o azeite e o vinho são dois produtos muito diferentes. O azeite é um tempero, e para se vender é necessário ter-se uma cozinha a apoiar. Infelizmente não há uma presença forte da cozinha portuguesa na Rússia ou na China, por exemplo, logo o nosso azeite acaba por ir “à boleia” da cozinha italiana, pois não há pizzaria do mundo onde não se use azeite.
- E quanto a outros produtos?
Estamos também agora a despertar para os frutos secos, para as amêndoas, as nozes e outras culturas que eram típicas de zonas do Norte do País e que agora começam a dar os primeiros passos na região do Alentejo graças à água do Alqueva. Vamos ver se têm sucesso. A Califórnia produzia grandes quantidades deste tipo de frutos, mas estão em dificuldades por falta de água, e algumas das empresas americanas estão a olhar para Portugal como possibilidade de investimento.
- Existe alguma hipótese de repetir a barragem do Alqueva noutro ponto do País?
É difícil, pois ali temos o rio Guadiana para aproveitar; e outros rios no País, como o Tejo, já têm numerosas barragens. No entanto, teremos de fazer aquilo que for possível em termos de água e geri-la da melhor forma. Há que dedicar mais investimento ao regadio, porque ele tem uma grande capacidade produtiva para Portugal.
- Mas grande parte da nossa capacidade de investimento já foi gasto, nomeadamente em estradas…
O investimento nas estradas foi importante, mas se calhar não havia necessidade de tantas auto-estradas. Se parte desse dinheiro tivesse sido aplicado em projectos de captação de água para regadio e para produção de produtos agrícolas, de certeza que o País estaria mais rico. Muitas foram construídas com o argumento de combater o despovoamento do interior, mas ele continua.
- Para travar esse despovoamento, então, seriam necessárias outras políticas…
Só há uma maneira de travar o despovoamento: é criar capacidade económica nessas zonas, e acredito que será a agricultura que a criará. A agricultura é o motor das zonas do interior mais pobres. Muitas das zonas nas quais se investiu no regadio, ou na barragem do Alqueva, também eram zonas muito pobres. Hoje vê-se a criação de riqueza, de postos de trabalho, de actividade económica. Sem actividade económica não se consegue fixar a população.
- Mas muitas dessas zonas pobres do interior não têm capacidade económica para instalar melhores condições de rega…
Se elas são pobres, é natural que não. A zona do Alqueva também era pobre, logo o investimento teve de ser público, porque de outra maneira é difícil. Noutros casos o investimento pode ser privado, mas no caso do Alqueva note que a estrutura está desenhada para suportar três a quatro anos de seca, enquanto que nenhum investimento privado faz uma estrutura com capacidade de rega para mais de um ano. Simplesmente não faz: isso custa muito dinheiro. Somente o investimento público permite essa garantia. Para muitos investidores é um factor de segurança que não existe noutros sítios.
- Esse investimento permitiria, então, competir melhor com a Europa?
Eu não posso comparar Portugal a um país do centro da Europa cujo forte seja produzir cereais, produzir carne ou produzir leite. Se for para França ou para a Bélgica, onde chovem 230 dias por ano, consigo ter esse tipo de produções sem custos de rega. O problema não é produzir, é produzir a custos baratos. O problema é saber se o investimento compensa o retorno, e onde nós seremos sempre competitivos é nas culturas mediterrânicas.
- A distribuição de fundos comunitários ainda ajuda os nossos agricultores?
Quando se fala em agricultura, fala-se sempre nos apoios aos agricultores, esquecendo-se sempre que os destinatários finais desses apoios são os consumidores. As pessoas às vezes não têm esta percepção, mas quando vão ao supermercado tanto uma pessoa que ganha o ordenado mínimo e uma pessoa que aufere 10 mil euros de ordenado conseguem comprar leite devido ao baixo preço garantido por estes apoios.
- E sem serem ajudas à produção?
Também existem ajudas indirectas ao investimento, geralmente a 40 por cento. Em cada 100 euros de investimento, o agricultor entra com 60 euros, a UE comparticipa com 34 euros, e o Estado português participa com 6 euros. Às vezes, quando se fala, parece que isto é tudo dado: não é.
- E quanto às quotas, um dos aspectos mais criticados da PAC?
As quotas já não existem. As quotas de leite acabaram, criando até, em conjunto com outros factores, uma crise profunda no sector. O sector sofreu com o fim das quotas e com o embargo russo, que foi uma decisão política paga pelos agricultores europeus.
- Existe também a ideia entre algumas famílias de que o leite faz mal à saúde…
Se recuarmos alguns anos, também houve uma campanha que dizia que o azeite fazia mal e que as sardinhas tinham uma gordura que também fazia mal. Agora dizem que as sardinhas são o melhor que há. O conhecimento científico vai evoluindo. Há 40 anos, uma família de classe média alta gostava de proporcionar carne aos seus filhos, porque a carne era o melhor que se conhecia. Repare que hoje não é assim, tenta-se equilibrar mais a alimentação, porque os conhecimentos são outros. Acho é que a sardinha dentro de 20 anos será mais cara do que a lagosta, porque é mais saborosa, e porque não há possibilidade de a criar em cativeiro…
- Portugal ainda importa mais produtos agrícolas do que exporta…
Pensa-se que 2020 será o ano em que se alcança o equilíbrio da balança comercial em termos de produtos agrícolas. Mas nesse aspecto há uma faceta que não tem a ver com a nossa capacidade produtiva. Quando vai ao restaurante, encontra invariavelmente abacaxi e manga. Não são frutos produzidos cá. Também se consome cerejas no Natal, fora de época em Portugal, importadas da América Latina. Os consumidores perderam a noção da época dos frutos em Portugal, porque os podemos importar de todo o mundo. Encontra-se agora nos supermercados melancia provinda de Marrocos, porque aquela melancia não pode ser produzida cá neste momento: em Portugal só produzimos melancia por volta de Julho/Agosto. Não é possível impedir os consumidores de consumir frutos fora de época, mas como é tudo importado, quando se faz as contas na balança, eles pesam.
- O Governo pode tomar medidas contra este comportamento?
Não é possível por decreto proibir este comportamento, só fazendo uma educação dos consumidores. Mesmo assim, como estamos a exportar mais, estima-se que a balança se equilibre. Tem havido nos últimos anos um grande esforço de abertura de mercados exteriores, e cada vez se consegue aumentar mais as exportações.
- Mas é importante consumir produto nacional?
Faço o apelo a mais bom senso da parte dos consumidores. Quando forem ao restaurante peçam uma laranja ou uma pêra de sobremesa, que são produtos portugueses, ou uma fruta da época, porque aí já é fruta produzida em Portugal.
- Mas a nível do Governo a agricultura já não é considerada um sector estratégico…
Sim, é verdade que para este Governo a agricultura não é considerada um sector estratégico, o que é pena. O ministro é uma pessoa conhecedora do sector, com quem temos uma boa relação de trabalho, mas a verdade é que, sem ser no anterior Governo, onde a pasta da agricultura era uma prioridade dos partidos que faziam parte da coligação, a agricultura nunca foi uma prioridade dos vários Governos.
- Uma abordagem diferente à agricultura talvez fosse benéfica para o País…
Está na hora de se olhar para a agricultura de forma diferente. Uma pessoa pode ir ao médico 20 vezes na vida, ao advogado cinco vezes, mas precisa do agricultor três vezes por dia, porque precisa de comer. Isto é incontornável: ou eu produzo os meus próprios alimentos, ou preciso do agricultor. E não é só o alimento, também temos de ter em conta o oxigénio e até mesmo a paisagem que as árvores e plantas dos agricultores providenciam, e que não custa nada aos consumidores. O que seria os Açores sem a agricultura? Não teria aquela paisagem. O que seria o Douro sem as vinhas? É um bem público que até quem desenvolve o turismo aproveita para ganhar dinheiro.
- Portugal precisa, então, de mais profissionais desta área, e a CAP tem três centros de formação para ensinar novos agricultores…
Sim, eles formam agricultores, mas não só, formam também pessoas do mundo rural. Não fazemos só cursos para agricultores, porque os agricultores são poucos. Fazemos cursos para as necessidades do meio rural. Temos centros em Almeirim, na Guarda e em Vila Real.
- Correspondem às necessidades da população?
Sim, dentro daquilo que são as ofertas de cursos, dentro do catálogo nacional de qualificações. São cursos que incidem sobre as mais diversas matérias, como o curso de podador, de jardinagem, agricultura biológica, lá está, as necessidades que surgem no mundo rural. Mas também fazemos cursos de informática, porque é algo que também tem interesse no mundo rural.
- Gostariam de ter uma oferta maior?
Estamos a passar por um momento complicado. As verbas para formação profissional foram muito reduzidas nos últimos anos, e nem sei como vamos continuar com estas formações com as verbas e os meios existentes. Não vai ser fácil.
- Mas até para exportar e para competir mais formação seria importante…
O sector do vinho leva décadas de avanço em relação aos outros todos, porque está organizado, porque tem capacidade de venda, tem marketing, e os exportadores já sabem hoje que alguém tem de andar de mala na mão pelo menos 100 dias por ano por esse mundo fora. Alguns dos outros sectores estão a organizar-se agora. Existe gente nova, com outras capacidades, como falar Inglês. Ninguém pode ir vender nada para o estrangeiro sem ter um ‘site’ em Inglês, para que o comprador, seja de azeite, vinho, ervas aromáticas, etc., consulte para conhecer a empresa. Faz tudo parte de um grau de exigência muito maior para exportar. As pessoas pensam que exportar é fácil: não é. É necessário ser-se muito profissional para se conseguir competir.
- Concorda com as transferências das matérias agrícolas para as Câmaras Municipais?
A CAP reagiu publicamente contra a reforma das florestas, porque ela vem possibilitar às Câmaras, todas as 308, fazer a sua política florestal de forma independente. É impossível ter-se um País tão pequeno como o nosso com 308 políticas florestais diferentes. As nossas Câmaras já têm outras atribuições para as quais não têm capacidade técnica.
- Então não havia necessidade de descentralização?
Nenhuma. Isto é uma ideia que nós achamos que não vai funcionar. É uma má decisão, e vai ter consequências graves se for ainda mais aprofundada, nomeadamente na distribuição de apoios. Para isto ser uma coisa regional, tínhamos de fazer uma regionalização séria, com orçamentos regionais, com parlamentos regionais, com estruturas do Ministério da Agricultura regionais. Tudo o que o Governo fez foi transferir competências para as autarquias — e as autarquias em ano de eleições autárquicas todas acham muito bem — que ainda não consideraram que depois, quando começarem a acontecer as consequências dos fogos, etc., o Governo vai dizer “não temos nada a ver com isso, nós já delegámos isso”. Estamos a falar de um assunto demasiado sério para ser tratado assim.
- Isso vai dificultar, nomeadamente, o combate aos incêndios…
O fogo, num país mediterrânico, faz parte do ciclo natural. O que não pode é ter as proporções que alcança, não podem é existir 150 ignições num dia. Com este número de ignições, o problema não é se a floresta está limpa ou está suja. O problema é quando se quer resolver a questão pela forma mais simples, ou quando se quer descartar a responsabilidade.
- Os agricultores também têm ocasionalmente de enfrentar casos como o dos nitrofuranos…
O caso dos nitrofuranos, como outros, tornou-se uma questão mediática. As empresas que foram obrigadas a abater os frangos colocaram o Estado em tribunal, e estão a ganhar. Ganham todos os processos, porque na realidade não existia nada de risco para a saúde pública. São situações em que é preciso ter muito cuidado. Mais uma vez os produtores sofreram, tendo enfrentado um corte no rendimento muito grande devido a um pânico mediático.
- Acha que vale a pena ser agricultor em Portugal
Acho que vale hoje mais a pena do que nunca. Os agricultores há uns anos quase que tinham vergonha de serem agricultores, havia uma grande pressão sobre receber subsídios, e havia uma imagem muito negativa da profissão. Hoje as coisas, felizmente, melhoraram. A agricultura é uma actividade extremamente interessante para os jovens devido à sua sofisticação: já não é preciso andar sujo e de enxada. Os agricultores hoje têm meios tecnológicos, têm tractores, têm equipamentos sofisticados que eliminam a necessidade de esforço físico como existia no passado. É uma actividade de ar livre, muito exigente, mas que tem uma função extremamente nobre, que é a de alimentar todas as pessoas, cuidar do ambiente, ter uma responsabilidade para com as gerações futuras. É fantástico sentir isso como agricultor.