Jogos de xadrez

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Marcelo e Costa transformaram o exercício dos seus cargos num mero jogo de xadrez. Na sequência do triste episódio que teve lugar no Ministério das Infra-estruturas, o Presidente exigiu a demissão de Galamba. Costa não admitiu a ingerência, nem gostou da sugestão musculada e, se não por outro motivo, mostrando quem manda no Governo, decidiu mantê-lo. Costa confiou numa maioria obtida há cerca de um ano e na postura intrémula e indolente de Marcelo que, até então, se ficava por recados genéricos que pouca ou nenhuma mossa faziam. Desta vez, o Presidente ripostou e os recados deixaram de o ser, parecendo as ameaças de mãe antes de pegar no correctivo chinelo. O Presidente foi tacticista quando se julgava que Costa tinha esse monopólio. Fosse pela dureza do correctivo, fosse pela surpresa da manobra, o primeiro-ministro remeteu-se ao silêncio.

Joga-se agora um jogo de espera. Costa aguarda pelos resultados económicos e, sobretudo, para que estes encontrem rápido respaldo nos bolsos dos portugueses. Do seu lado tem ainda o PRR que, não correndo bem também não destoa e o argumento catastrófico da mudança em plena execução. Seria como trocar de piloto, por um menos experiente, no meio da tempestade. Por sua vez Marcelo olha menos para os números e mais para a política e instituições. Aguarda pelo resultado da comissão parlamentar de inquérito, que se lhe afigura favorável. Já Montenegro corre por fora e aguarda (e mal!) pelas decisões que resultem deste jogo, apontando baterias para umas eleições europeias que só terão lugar daqui por mais de um ano. Até lá, é quase seguro que não teremos Governo, e não saberemos se temos PSD e Portugal…

Nesta aparente espera, um e outro vão posicionando as tropas. Costa atira com mais uns milhões em apoios extraordinários (quantos foram ao longo dos seus mandatos?) e Marcelo convoca o Conselho de Estado (que sabe estar desequilibrado a seu favor) depois de Cavaco ter dado voz a milhões de portugueses que se envergonham do “status quo”. O ex-Presidente e ex-primeiro-ministro, tão malquisto pela esquerda, está coberto de razão na análise que fez. Durante o período de governação, mais colado à esquerda radical ou já em maioria, Costa não promoveu qualquer reforma, governando de forma avulsa e cedendo a interesses que lhe garantiam estabilidade governativa. Optou por medidas avulsas, algumas fracturantes e que deveriam ter sido objecto de plebiscito, mas que a comunicação social bem soube ecoar, garantindo, assim, um falso estado de graça e de aparente magnanimidade. Contudo, foi incapaz de fazer uma reforma estrutural, projectando um Portugal futuro para as gerações vindouras. Os transportes não funcionam e são deficitários, quer economicamente, quer nas respostas à população, a habitação a preços acessíveis escasseia, a Saúde está pelas ruas da amargura e as urgências fecham em catadupa, a Educação é anedótica, inexistente e acumula greves sem fim, a TAP transformou-se numa novela, o poder de compra é cada vez mais diminuto, os jovens qualificados emigram em barda, os sem-abrigo e as pessoas carenciadas conhecem números nunca antes vistos, os escândalos envolvendo políticos multiplicam-se, a justiça continua a tardar, existe uma nublosa sobre a independência de algumas instituições, os bens essenciais conheceram máximos históricos, o nível global da democracia anda próximo do fundo, enfim, Portugal está bastante pior do que no passado. E o que Cavaco disse resume-se facilmente nisto:

Os actores políticos devem tirar as devidas ilações e assumir as responsabilidades que lhes cabem…

Salvo as inerências do primeiro-ministro, do Presidente da Assembleia da República (este por ser quem é!) e dos deputados eleitos pelos partidos, o Conselho de Ministros é, tendencialmente, apartidário ou, pelo menos, suprapartidário. Não estou, porém, em crer que Eanes, Lobo Xavier, Marques Mendes ou Leonor Beleza deixem de dar a devida nota do estado de desgaste a que se chegou e, sobretudo, da manifesta incapacidade do Governo para dar um outro rumo à situação. Alertarão para a falência das instituições e para o sentimento de impunidade que esta maioria encobre. Marcelo buscará esse conforto e ficará apenas na sua mão a sua decisão quer quanto ao “timing”, quer quanto ao modo.

De Costa ouvirá que voltará a encabeçar um novo Governo, caso o Presidente o demita, forçando um novo braço-de-ferro. Costa sabe já ter esgotado quase todos os seus recursos partidários e que, na sociedade civil, goza de pouca credibilidade para lá do seu círculo de amigos. Estará, assim, condicionado e forçado a repetir diversos nomes na lista que apresentar, quase certo do chumbo presidencial. Por sua vez, Marcelo sabe não existirem, neste momento, alternativas dentro do Partido Socialista que tenham força para sobreviverem à própria maioria parlamentar. Assis, Seguro ou Sousa Pinto terão que aguardar pelo seu tempo. Um Governo de outras cores nestas circunstâncias terá, seguramente, a mesma sorte. Resta-lhe, assim, dissolver o Parlamento e confiar no resultado de novas eleições. Que não pretende imediatas, até porque julga que o PSD ainda não está devidamente cimentado enquanto alternativa clara. E, sobretudo, porque, ainda que remota, existe sempre a hipótese de Costa ter uma terceira vida e voltar a vencer o confronto eleitoral. Aqui, não restaria ao Presidente uma outra solução que não a própria demissão, algo inédito no Portugal democrático.

Embora com as tropas prontas, Marcelo aguardará pelo fim da comissão de inquérito e, não havendo sobressaltos, pela época dos fogos e o início do ano escolar. Será apenas uma gestão de calendário. Já Costa aguardará por Marcelo, pelas vacaturas de cargos europeus e por que lhe instalem um alta-voz no carro.

A questão é:

– E Portugal? Pode esperar?