O outro zero à esquerda

Se no Ministério das Infraestruturas um governante quis distribuir as suas responsabilidades pessoais por todo o Parlamento, na Administração Interna viu-se um ministro descarregar a sua culpa num organismo pelo qual devia responder, sacudindo a água do capote para ele próprio escapar por entre os intervalos da chuva.

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As pseudo-habilidades do ministro Eduardo Cabrita, esta semana, visando escapar ileso a um escândalo que claramente o atingiu lembraram as manobras de um elefante desajeitado em loja de porcelana. Acabar com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para não acabar com Eduardo Cabrita – eis o resultado de uma farsa que teve como principal dramaturgo o primeiro-ministro António Costa. Também aqui, no entanto, o resultado foi um ministro isolado, desautorizado e humilhado. Outro zero à esquerda.

Quando, há nove meses, os telejornais noticiaram que um cidadão ucraniano morrera à mãos de funcionários do SEF no aeroporto da Portela, em Lisboa, Portugal inteiro fez ‘zapping’ e mudou para a telenovela da noite. Nem o Presidente da República, nem o primeiro-ministro, nem a directora do SEF nem o simples homem da rua deram especial importância política à notícia: era um caso lamentável, os culpados seriam castigados no serviço e punidos na Justiça e estava o assunto encerrado.

Nove meses depois, porém, numa semana de substrato noticioso fraco para os telejornais, a tardia demissão de Cristina Gatões, directora do SEF, veio trazer à colação a horrível morte do urcraniano Ihor Homenyuk, em Março, nas instalações da Portela. Portugal, de repente, estava indignado. O Presidente da República pronunciou-se, como é seu hábito, muito para lá das competências constitucionais e do bom-senso, e o ministro da Administração Interna viu-se subitamente no epicentro de um escândalo político de dimensões colossais.

Eduardo Cabrita, o alegado “amigo” e “protegido” de António Costa, pôde então conhecer na carne o que é estar a ser assado num espeto, na praça pública, enquanto o primeiro-ministro assiste calmamente sem dizer palavra. Ou melhor: mandando brasas para o fogo, através de declarações dos seus dois papagaios de serviço, Ana Catarina Mendes e Fernando Medina, ambos condenando Cabrita por não ter agido na altura própria.

Esta típica “facadinha nas costas” de Cabrita, vinda do âmago do Partido Socialista, juntou-se à condenação generalizada do ministro, que numa fuga para a frente protestou, alagado em suor, a sua total inocência e anunciou a remodelação geral do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, se não mesmo a sua extinção. Tarde demais: a fogueira em que Eduardo Cabrita devia ser queimado já estava a crepitar para o auto de fé no Terreiro do Paço.

Uma das primeiras a mandar achas para o braseiro foi a coordenadora do Bloco de Esquerda, ao afirmar que o ministro da Administração Interna “perdeu as condições para o lugar que ocupa”, dada a forma como lidou com a actuação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Catarina Martins lamentou que, em vez de anunciar “transformações profundas” na segurança das fronteiras e na política de imigração, “para que os direitos humanos fossem respeitados”, Eduardo Cabrita tivesse escolhido “vitimizar-se”. Ora “isso mostra uma incapacidade para implementar as alterações [no SEF] de que o país precisa e nós julgamos que, assim sendo, não tem condições para continuar”, declarou.

À direita, o Chega não foi mais meigo. Em comunicado e várias intervenções televisivas, André Ventura defendeu a manutenção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, mais eficaz e reestruturado, e classificou o ministro Cabrita como “um dos piores da História da democracia”. “Quem deve desaparecer de cena é o ministro da Administração Interna e não o SEF, que enquanto polícia tem sido vítima do desnorte e desorientação” socialista e “uma das polícias mais maltratadas pelo Governo, com pouquíssimo investimento nas diversas áreas cruciais, nomeadamente recursos humanos. Uma vergonha europeia”.

O CDS afinou a música pelo mesmo diapasão, ao considerar que a eventual extinção do SEF é uma táctica do Governo para não responsabilizar politicamente o ministro da Administração Interna no caso da morte do cidadão ucraniano. O líder parlamentar centrista, Telmo Correia, afirmou que a extinção ou remodelação do SEF “é algo que não faz nenhum sentido”.

Prudente em extremo, o líder social-democrata Rui Rio disse por seu turno, à saída de uma audiência em Belém, que “aquilo que se passou, a morte de um cidadão ucraniano por agentes do SEF, não é razão para se fazer uma reestruturação do Serviço, é razão para se mover um processo crime e se averiguar o que se passou naquele caso concreto”. E concluiu: “Se o SEF necessita de uma reestruturação”, esta deve ser feita “com a devida ponderação e não agora, para tentar encobrir uma situação concreta”.

Caladinho que nem um rato, ao longo de todo este processo, o primeiro-ministro António Costa foi ouvindo o alarido sem se aproximar das chamas, não fosse dar-se o caso de também ele ficar chamuscado. Ouviu Fernando Medina, seu presuntivo “delfim”, opinar que Eduardo Cabrita “perdeu o tempo dele relativamente à reestruturação do SEF” e que devia ter “tomado a liderança política do processo de transformação” do SEF logo em Outubro. Ouviu Ana Catarina Mendes, sua adjunta directa no partido, exigir que Cabrita desse ao país “as explicações que devia”. Ouviu Marques Mendes dizer ao país que “Cabrita não tem condições para continuar no cargo”, que “o ridículo mata” e que a queda do ministro “é uma questão de tempo”. Ouviu João Ataíde, coordenador do Gabinete de Inspecção do SEF, bater estrondosamente com a porta depois de Cabrita ter atirado para cima de si as culpas no caso do ucraniano assassinado. 

Por fim, quando o ministro da Administração Interna já torrava no espeto, desautorizado e fragilizado ao ponto de inspirar piedade, António Costa saiu da sua curiosa letargia e anunciou laconicamente que mantinha “total confiança” em Cabrita.

O ministro que resta do churrasco, contudo, é uma pálida imagem do Eduardo Cabrita confiante e íntimo que em Outubro de 2017 acedeu ao pedido de Costa para substituir Constança Urbano de Sousa na Administração Interna. Corrida do cargo com o alto patrocínio de Marcelo Rebelo de Sousa por causa da ineficácia do seu departamento no combate aos fogos florestais, a queda de Constança poderia ter mostrado a Eduardo Cabrita como António Costa é capaz de deixar cair os seus ministros sem o mais leve problema de consciência. Mas Cabrita não percebeu – ou não quis perceber. E hoje conta tanto, no Governo de Costa, como Constança Urbano de Sousa contava uma semana antes de cair. Nada. ■