O que tem de ser tem muita força: morreu na passada quarta-feira, no hemiciclo onde nascera em 2015, a coligação de emergência que o líder socialista António Costa inventou para transformar uma derrota eleitoral numa possibilidade de Governo. O que torto nasce tarde ou nunca se endireita – e ao sexto Orçamento de Estado, cansados de perderem votos à custa de andarem com o “burguês” PS ao colo, os dois principais apoiantes do Executivo (o leninista PCP e o estalino-trotskista BE) chumbaram as contas que o ministro João Leão congeminara para 2022.
Ao longo de várias semanas, os portugueses puderam assistir em directo à evolução do cancro galopante que fazia definhar a Geringonça. Foi pungente. A proposta de Lei Orçamental, a cada dia mais estraçalhada pelas exigências da extrema-esquerda, chegou à votação final na generalidade completamente irreconhecível.
Ainda assim, nem comunistas nem bloquistas estavam satisfeitos, pois sonhavam, apesar de tudo, transformar um simples Orçamento numa espécie de ditadura bolchevique das contas públicas, eivada de preceitos radicais e de preconceitos ideológicos. Contavam para isso com a angústia do malabar Costa, que precisava desesperadamente dos seus votos para continuar na poltrona sem sobressaltos. Mas à medida que o tempo avançava, as trocas de juras de amor entre estes improváveis namorados tornavam-se cada vez mais frias e azedas.
Cansado de tanto ter cedido sem obter na volta um simples sorriso de simpatia, o PS de António Costa deu a negociação por baldada e foi a votos. Entre terça e quarta-feira, o hemiciclo de São Bento ecoou horas e horas de conversa fiada, com o BE e o PCP (mais o apêndice PEV que, como a melancia, é verde por fora e vermelho por dentro) esgotando-se em justificações para votarem contra.
Às seis da tarde de quarta, por fim, deu-se o desenlace fatal: com as abstenções do PAN e de duas deputadas não inscritas, os votos a favor do PS e os votos contra de todos os outros deputados, o Orçamento do Estado teve um chelique e foi desta para melhor. Nesse momento deixou de bater o coração da Geringonça. E por mais que a tenham elogiado junto à cova, no momento de enterrá-la, ninguém verteu por ela uma única lágrima.
O irónico de tudo é que a morte da horrível criatura coincide com um momento de fartura financeira, que aliás Costa não se cansou de usar como argumento eleiçoeiro nas últimas autárquicas, em que o tiro lhe saiu pela culatra, como se sabe. Mas a bazuca não deixava de ser um poderoso engodo na pesca à linha que o líder socialista vinha exercitando na negociação do Orçamento. Pois nem assim.
Que será agora do apetitoso bolo de mais de nove mil milhões de euros que a Europa se prepara para despejar sobre as cabeças de quem governar em 2022? Será que bloquistas e comunistas tiveram mais olhos do que barriga e exigiram a Costa fatias descomunais e o astuto raposão do PS não esteve pelos ajustes? A brincar, a brincar, o Governo receberá ao longo do próximo ano 9.117 milhões de euros de fundos europeus (entre o Portugal 2020, o Portugal 2030 e o Plano de Recuperação e Resiliência/PRR). Alguém da “escola Guterres” fez as contas e concluiu que serão 25 milhões de euros por dia, cerca de um milhão de euros por hora! É isto que estará verdadeiramente em jogo em futuras eleições.
Ao longo do processo, vários figurões ficaram mal no retrato. Mas nenhum ficou tão mal retratado como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que mais uma vez desceu do seu lugar, calçou a chinela e se armou em salvador do Orçamento dos socialistas, implorando à extrema-esquerda que o votasse favoravelmente (e ameaçando convocar eleições em caso contrário, o que desde logo o atou a uma decisão que deveria ser ponderada a frio).
Para além de ninguém lhe ter encomendado o sermão, Marcelo excedeu-se ainda no excesso, chegando a tentar aliciar o PSD-Madeira para industriar os seus deputados em São Bento a votarem o OE de Costa. Mas, apesar de ter vacilado num primeiro momento, o líder ‘laranja’ madeirense, Miguel Albuquerque, acabou por vir às boas e alinhar com Rui Rio num voto negativo.
Desfeiteado e apanhado em falso, Marcelo engoliu o chumbo do Orçamento na bancada dos derrotados, quando poderia ter ficado serenamente a assistir, como árbitro que devia ser. Hoje mesmo, sexta-feira, o Presidente voltará a fazer uma cara séria ao receber em Belém os parceiros sociais (entre eles os patrões que há dias chamaram “desonesto” a António Costa). No Sábado será a vez dos representantes dos partidos políticos. E no dia 3 de Novembro, finalmente, reunirá o Conselho de Estado. Mas se já disse que, em caso de chumbo orçamental, dissolveria o Parlamento e convocaria eleições antecipadas, que outra coisa poderá Marcelo fazer agora sem perder (ainda mais) a face?
À direita, a preocupação pela instabilidade própria dos períodos de crise só é ultrapassada pela satisfação de existir agora a possibilidade de uma mudança de rumo na política nacional.
Os líderes patronais e os empresários ficaram naturalmente aliviados por não ter sido aprovado um orçamento estatizante e de grande dureza fiscal, claramente inimigo da economia de mercado. O “choque laboral” que se preparava iria agravar os custos associados à compensação por despedimento, às horas extraordinárias e ao teletrabalho e trabalho através das plataformas. Agora volta a haver caminho para moderar todos esses ímpetos.
Por seu turno, os dirigentes políticos à direita todos têm razões para esperarem uma mudança de capítulo em eleições legislativas antecipadas: o CHEGA irá pela primeira vez a votos, à séria, depois de ter dado um arzinho da sua graça em São Bento; a Iniciativa Liberal parte também com optimismo para um escrutínio nas urnas; o CDS espera legitimamente sair do abismo em que caiu nos últimos anos; e o PSD vê agora a hipótese de chegar ao poder, ainda que possa ter de conceder parte do bolo a este ou àquele aliado. O facto de nestes dois últimos partidos estar ainda por decidir a liderança (o que sucederá antes de eleições antecipadas) só acrescenta algum picante à equação.
Em suma: se alguém tinha razões para chorar a morte da Geringonça, o facto é que ninguém o fez. Ficou sepultada no talhão das inutilidades. Seria caso para desejar paz à sua alma – se a tivesse… ■