Saúde em estado crítico

Antes que a situação se torne explosiva, a ministra da Saúde antecipa-se e joga num “diálogo” há muito esperado pelas associações do sector. Mas nem essa “nova postura” apaga o grande descontentamento generalizado, resultante sobretudo de uma angustiante falta de profissionais.

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Com a Saúde a romper por todos os lados, Marta Temido considerou as reuniões com as Ordens do sector como o “início de uma colaboração importante” em áreas como o acesso aos cuidados de saúde e gestão estratégica dos profissionais. Numa primeira ronda, a ministra da Saúde reuniu-se com as Ordens dos Médicos, dos Médicos Dentistas, dos Farmacêuticos, dos Enfermeiros, dos Psicólogos, dos Nutricionistas e dos Fisioterapeutas.

Citada em comunicado, a governante salientou que esta colaboração com as Ordens profissionais terá um “enfoque no acesso à prestação de cuidados de saúde e na gestão dos serviços de saúde alinhados com os instrumentos de planeamento existentes, nomeadamente Plano de Recuperação e Resiliência e Plano Nacional de Saúde, assim como uma gestão estratégica dos profissionais de saúde”.

A equipa ministerial da Saúde começou esta semana a receber as Ordens, sindicatos e associações do sector, encontros que há muito eram esperados pelos parceiros. “O Ministério da Saúde assume o objectivo de promover a motivação e satisfação dos profissionais de saúde, com oportunidades de desenvolvimento profissional e de competências em ambientes de trabalho saudáveis e seguros e que activamente envolvam os profissionais no desenho e implementação de respostas inovadoras e de qualidade”, adiantou ainda o comunicado.

Após o encontro, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, considerou positiva a reunião com a ministra da tutela, afirmando que o “diálogo é fundamental” no sentido de encontrar soluções para os problemas que existem no sector. Mas sublinhou que muitas das intenções expressas no programa do Governo para a Saúde exigem “orçamentos adequados”, considerando que “este é o momento-chave para que muitas, ou pelo menos uma parte” dessas intenções possam ser concretizadas. Referindo-se à discussão do Orçamento do Estado para 2022, Miguel Guimarães insistiu na importância de existirem “orçamentos plurianuais na saúde, e até uma lei de meios” que permita responder de “forma mais adequada” às necessidades das populações.

A bastonária dos enfermeiros, Ana Rita Cavaco, saudou também a “mudança de postura” de Marta Temido relativamente à comunicação com as Ordens profissionais, depois de há semanas ter afirmado que a recondução de Marta Temido no cargo era “uma pena”, já que, na sua opinião, “ficará na história como a pior ministra” desta área.

Falta de profissionais

Num registo mais realista, o presidente da Associação Portuguesa da Hospitalização Privada (APHP) avisou esta semana que o Serviço Nacional de Saúde está com “dificuldades” em reter os profissionais de saúde, salientando que estes também “não existem” para serem recrutados pelos hospitais privados. O mesmo aviso foi feito por sindicatos e ordens, que apontam o dedo à saída de profissionais de saúde para o estrangeiro e para a reforma, sem que o Governo consiga travar essa tendência.

O presidente da APHP, Óscar Gaspar, disse à Lusa que “em toda a Europa há falta de médicos e falta de enfermeiros e também em Portugal temos essa questão”. Para o presidente da APAH, as dificuldades são mais acentuadas em algumas especialidades, como Dermatologia, Anestesiologia ou Psiquiatria.

“É uma questão que foi detetada há uma série de anos e que tem vindo a agravar-se”, lamentou, alertando ainda que “há muitos médicos” à beira da reforma pelo que é preciso acautelar que haverá “formação suficiente” para as necessidades do país.

Contactado pela Lusa, o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) referiu que o “pico das reformas” será atingido nos próximos três anos no Serviço Nacional de Saúde, com a aposentação de cerca de 1.200 médicos hospitalares e cerca de 1.000 médicos de família, a que se juntam as rescisões.

“O facto de esta geração estar muito bem preparada, a qualidade da nossa formação ser de excelência e haver muitas alternativas e muita necessidade de médicos em todos os países do norte da Europa faz com que haja, tal como em muitas outras profissões, uma verdadeira corrida aos nossos médicos”, salientou.

Como tal, disse, existe uma carência de especialistas devido a “falta de investimento nos últimos anos”, mas também pelo facto de “não se valorizar o próprio estatuto de formador e de se ter tentado tapar o sol com a peneira, o que agrava a situação”. 

Fuga para o estrangeiro

O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, observou por seu turno que os hospitais privados têm muitos dos seus médicos, “para não dizer maioria”, a tempo parcial. E enquanto o sector privado actua consoantes as necessidades (“quantos mais ‘clientes’ tiverem, mais aumentam a sua capacidade” e vice-versa), o SNS não tem essa gestão “mais flexível” que permitiria ter “uma reserva estratégica” para responder a “várias ameaças” como pandemias, epidemias, catástrofes, como incêndios ou guerras.

Quanto aos recursos de enfermagem, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, afirmou que Portugal forma todos os anos cerca de 3.000 enfermeiros, o número necessário para o sistema de saúde. Contudo, há “um problema grave” por resolver, “no caso do SNS, porque não abrem contratações. Até na pandemia fizeram contratações de quatro meses, que é ridículo, e fugiram todos para outros países onde tinham perspetivas diferentes e vínculos duradouros”, explicou.

No setor privado, disse Ana Rita Cavaco, passa-se a mesma coisa. Apesar de haver mais alguns incentivos a nível salarial, não existem outros tipos de incentivos para os fixar. “Tudo isso os enfermeiros pesam na hora de decidir: se permanecem em Portugal ou se vão trabalhar para o estrangeiro, porque hoje não emigram só os mais novos, emigra gente com 10 ou 20 anos de experiência profissional e muitos especialistas”, salientou. Devido à formação dos enfermeiros em Portugal, disse: “há até países da Europa que estrategicamente deixaram de formar tanto no seu país porque sabem que podem vir buscá-los aqui”.

Bolieiro cáustico

Nos Açores, o presidente do Governo Regional, José Manuel Bolieiro, considerou “inaceitável” que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) seja “apenas” um “serviço do Continente”, situação que o seu Executivo (PSD/CDS-PP/PPM) “não aceita”.

“Não pode o SNS ser apenas um serviço do Continente. Isso não é nacional e eu acredito muito fortemente, sob ponto vista da cidadania, no bom funcionamento do SNS”, afirmou José Manuel Bolieiro, numa intervenção na conferência “Cuidados de Saúde Primários – Os Novos Desafios Pós-Pandemia”, organizada pela Unidade de Saúde da ilha de São Miguel.

“Isto é inaceitável e deve, por todos e com todos, ser denunciado onde efectivamente há este voltar de costas entre os sistemas nacional e regional”, afirmou. Bolieiro lembrou que a prestação dos cuidados de saúde é uma “responsabilidade em primeiro lugar do Estado”, com a “parceria das regiões autónomas”. “Parece que o SNS não conjuga, nem se co-responsabiliza, com os serviços regionais de saúde das regiões autónomas”, reforçou.

O social-democrata realçou também que a região tem carência de profissionais de saúde, lembrando que muitos emigraram para o estrangeiro pela “falha na dignificação da carreira”.

“Nós temos necessidade de um reforço de profissionais de saúde por via académica. Tem de haver menos constrangimentos, perante uma evidente necessidade de mais profissionais, de origem nacional. Se o contributo da nossa Universidade dos Açores puder ser útil, pois que o seja”, apontou.

José Manuel Bolieiro afirmou ainda que o Governo Regional vai “apostar toda a possibilidade orçamental no investimento” em políticas de Saúde e realçou que não tem qualquer “bloqueio ideológico” quanto a parcerias com a “oferta privada ou cooperativa” na área da Saúde.

“Entendemos que a política das convenções fortalece a responsabilidade pública de oferecer à sociedade cuidados de saúde”, concluiu.

Enfermeiros descontentes

O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP) considerou, por seu turno, “extremamente insuficientes” os postos de trabalho previstos para os previstos concursos de enfermeiro especialista e enfermeiro gestor, alegando que centenas de profissionais continuarão sem expectativas de desenvolvimento de carreira.

“A abertura dos concursos é de facto positiva, tanto mais que já não abriam há 12 anos, mas na realidade os números são extremamente insuficientes” para dar resposta ao universo de enfermeiros que fizeram a sua especialidade, adiantou a dirigente nacional do SEP, Guadalupe Simões.

Em causa está um despacho do Ministério da Saúde, já publicado em Diário da República, que determina a distribuição dos postos de trabalho referentes às categorias de enfermeiro gestor e de enfermeiro especialista disponíveis para os concursos que serão abertos até 7 de Junho para o Serviço Nacional de Saúde.

Nesse sentido, estão previstos 522 postos de trabalho correspondentes à categoria de enfermeiro gestor e de 1.378 postos de trabalho na categoria de enfermeiro especialista.

“Sendo este o primeiro concurso em 12 anos, deveria criar expectativas de desenvolvimento profissional e isso não aconteceu. O Ministério da Saúde optou apenas por autorizar este número de postos de trabalho, o que significará que centenas de enfermeiros continuarão sem ter qualquer expectativa de desenvolvimento na carreira”, lamentou Guadalupe Simões.

De acordo com a dirigente sindical, o número de vagas previstas para a categoria de enfermeiro gestor vai levar a que “muitas unidades funcionais fiquem sem um enfermeiro responsável, que é quem faz a gestão dos recursos humanos e materiais”.

Postos previstos

Além disso, segundo Guadalupe Simões, o número de postos de trabalho de enfermeiros especialistas estabelecido para as Administrações Regionais de Saúde, que vão distribuir “essas poucas vagas pelos ACeS (agrupamento de centros de saúde), fica muito aquém do que é necessário”.

De acordo com o sindicato, estão previstos, ao nível dos enfermeiros especialistas para os cuidados de saúde primários, quatro postos de trabalho no Alentejo, seis no Algarve, quatro em Lisboa e Vale do Tejo, oito no Centro e dez no Norte.

“Está inscrito no Plano de Recuperação e Resiliência a internalização de meios complementares de diagnóstico nos centros de saúde, o que significa um aumento de pessoas aos centros de saúde”, alertou a dirigente do SEP, ao referir que associado a um médico de família “tem de existir uma equipa de saúde familiar”.

Segundo o despacho, estão previstos 36 postos de trabalho de enfermeiro gestor para o Alentejo, 25 para o Algarve, 93 para Centro, 191 para Lisboa e Vale do Tejo e 170 para o Norte e sete para outras entidades.

No que se refere à categoria de enfermeiro especialista, o despacho prevê 89 postos de trabalho para o Alentejo, 32 para o Algarve, 128 para o Centro, 717 para Lisboa e Vale do Tejo e 412 para o Norte.

Administradores hospitalares

O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Alexandre Lourenço, defende que os serviços de saúde em Portugal necessitam “mais do que nunca” de um “corpo profissional qualificado” de administradores hospitalares.

“Antes que sejam outros a fazê-lo por nós, devemos ser nós a liderar”, afirmou Alexandre Lourenço na abertura da comemoração dos 40 anos da APAH. Perante uma plateia em que estavam presentes, entre outros, o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, e os antigos ministros da Saúde Maria de Belém Roseira e António Correia de Campos, Alexandre Lourenço afirmou que “os desafios são tremendos”.

“Existe em todos nós a consciência de um caminho inacabado. As desigualdades sociais foram diminuídas, mas voltam a acentuar-se”, salientou, apontando vários problemas que estão a afectar o Serviço Nacional de Saúde.

Começou por falar dos profissionais de saúde, afirmando que estão a optar por “novas paragens e desertam as vagas” criadas para eles, enquanto “os serviços de urgência encerram episodicamente, a actividade electiva e urgente é assegurada por prestadores externos e doentes internados para terem acesso a meios de diagnóstico são transportados para prestadores privados”.

Para poderem operar, os hospitais recorrem a instalações de terceiros, disse, acrescentando que “os colaboradores do SNS apostam na prestação privada, através da ADSE”.

Para Alexandre Lourenço, “esta não pode ser a nova normalidade”, salientando que os administradores hospitalares “nunca foram um corpo condescendente, nem devem relativizar o momento actual”.

Dirigindo-se a Lacerda Sales, Alexandre Lourenço lembrou que há 40 anos que a carreira de administrador hospitalar não é revista.

Algarve sem hospital

Os deputados do PSD eleitos por Faro criticaram o programa do Governo por incluir projectos que o primeiro-ministro, António Costa, utiliza como “bandeira eleitoral” desde 2015, sem nunca serem concretizados, como o novo Hospital Central do Algarve.

Os parlamentares social-democratas que representam o Algarve na Assembleia da República consideram que a região é “um tema omisso no actual Programa do Governo” e as “poucas propostas apontadas” são “ideias que se têm repetido ao longo dos anos” e nunca se materializam, como uma nova unidade hospitalar de referência para o distrito de Faro.

“Neste sentido, os deputados do PSD vão questionar o Governo sobre a construção desta nova unidade hospitalar, uma obra prometida há sete anos por António Costa, mas que continua sem sair do papel. A melhoria das condições de saúde no distrito de Faro foi um tema central na campanha eleitoral e os parlamentares pretendem não deixar cair o tema no esquecimento”, prometeram os deputados do PSD num comunicado.

A mesma fonte recordou que o novo Hospital Central do Algarve “é uma promessa com mais de duas décadas” e acusou o líder do Governo, António Costa, de a “definir como prioridade no programa eleitoral dos últimos anos” em que se apresentou a votos para chegar ao cargo de primeiro-ministro.

“Foi assim em 2015, em 2019 e agora no programa do Governo. Mas o que vemos é que o projecto não passa de uma ideia, de uma proposta, que o Governo não defende verdadeiramente. É apenas uma bandeira eleitoral que António Costa utiliza nas suas deslocações ao Algarve, mas que guarda na gaveta quando regressa a Lisboa”, argumentou.

“Assim seja”…

Os três deputados eleitos pelo PSD em Faro – Luís Gomes, Rui Cristina e Ofélia Ramos – garantiram que vão “nesta legislatura tudo fazer para que o primeiro-ministro cumpra a sua promessa” e admitiram “chamar a ministra da Saúde ao Parlamento para saber em que estado se encontra o projecto” do novo hospital.

Os parlamentares social-democratas querem também “conhecer os verdadeiros projectos para a região” que vão ser concretizados, porque, “no programa do Governo, as medidas apontadas são as mesmas que já tinham sido apresentadas em 2015 e 2019 e que não foram concretizadas”.

“O Partido Socialista veio com o maior orgulho afirmar que a construção do novo hospital é agora um caminho sem retorno porque está no programa do Governo. Aqui estaremos para que assim seja, porque o PS e o Governo são exímios a encontrar as mais variadas desculpas para justificar a sua inacção e a sua falta de vontade em dotar o Algarve dos meios necessários para responder às necessidades da população”, referiram ainda os deputados.

Os representantes do PSD eleitos por Faro defenderam a necessidade de o Algarve contar com “um novo hospital, dotado de todos meios, humanos e técnicos”, mas destacaram também as necessidades que as actuais unidades do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) têm em termos de “reforço de pessoal e actualização dos equipamentos” nos Hospitais de Portimão e Lagos, que com Faro compõe a rede hospitalar do Serviço Nacional de Saúde na região. ■