Durante mais de uma década, a família Dos Santos e os seus fiéis aliados viveram numa alegre festa financiada por petrodólares. A recente queda do preço do petróleo, no entanto, expôs a terrível situação em que se encontra o seu reino privado. A festa acabou, mas a ressaca está apenas no início.
Ironia do destino ou talvez apenas coincidência, mas o facto é que Angola pediu ajuda externa ao FMI no mesmo dia em que Portugal o fez: 6 de Abril. Quatro décadas após a “descolonização exemplar”, a antiga província ultramarina em pouco já se assemelha à terra próspera que os portugueses foram forçados a abandonar, fruto de sinistras maquinações em Lisboa, que determinaram a sua entrega, sem consulta popular, ao bloco soviético. O povo está na maior das misérias, a economia está devastada, a doença causa a morte de milhares de pessoas, cujos corpos enchem as ruas e são ingloriamente atirados para valas comuns, a maioria sem ter direito sequer à derradeira dignidade de um funeral.
Economia sem balanço
O petróleo representa mais de 20% do PIB angolano, 95 por cento de todas as exportações e algo entre 80 a 95% de todas as receitas estatais segundo várias estimativas externas (as contas do Estado angolano não se pautam pela credibilidade). Cortado o financiamento dos petrodólares, o Estado do MPLA, que não diversificou a economia, teve de cortar no pouco que ainda providenciava aos angolanos.
Esta falta de diversificação económica é uma ferida auto-infligida. Em 1973 Angola era um dos maiores, se não mesmo o maior, produtor de café do mundo, e o seu solo fértil garantia-lhe um papel como um exportador de produtos agrícolas. Hoje importa quase toda a comida, enquanto o povo passa fome. Apesar dos vastos milhares de milhões que entravam todos os anos nos cofres do Governo de Eduardo dos Santos, muito do trabalho de desminagem teve de ser financiado pelo estrangeiro. Ainda em Março deste ano o Japão e a Noruega contribuíram com 200 mil euros para uma operação de retirada de minas na província do Malanje.
Entretanto, Isabel dos Santos, a filha do Presidente, tem uma fortuna estimada em 3 mil milhões de euros pela revista Forbes, e as “discrepâncias” no orçamento da Sonangol, a empresa nacional de petróleo, já ultrapassaram em vários anos os 30 mil milhões de euros segundo o FMI. Um valor desviado que representa 25% do PIB de Angola. O regresso do FMI certamente denunciará novos casos, mas não é certo que as eternamente prometidas reformas serão feitas. Aliás, esta não é a primeira vez que o FMI visita o país, sendo que a última missão data de 2009.
Para os mesmos de sempre
Mas estabelecida a crise, e a corrupção que a agudiza, o regime corta no pouco que dá aos mais fracos da sociedade. O orçamento do Estado para 2016 recebeu um corte inesperado de 20%, tendo já sido cortado em quase metade desde o início da crise em 2015. A austeridade é para continuar, especialmente agora que chegou o dinheiro do FMI. Os salários da frágil administração pública, muita dela já só praticamente existente em Luanda, vão ser congelados. Será também criado um imposto sobre o consumo, mas certamente não virá grande receita do consumo dos 24 milhões de angolanos que vivem com apenas um euro por dia.
O investimento público, vital num país ainda muito sub-desenvolvido, recebeu um corte de 53%. Mas mais graves são os cortes nos serviços públicos, onde o orçamento da recolha de lixo recebeu um corte de 70 por cento. Só em Luanda passou de 26 milhões de euros para apenas 9 milhões.
Enquanto José Eduardo dos Santos inaugurava, com pompa e circunstância, a requalificação do “Largo do Ambiente” no centro de Luanda (agora com direito a duas rotundas, efeitos luminosos e parque de estacionamento subterrâneo), os sistemas de purificação de águas estavam a começar a deixar de funcionar um pouco por todo o país. Angola nunca educou técnicos locais, e quando os técnicos estrangeiros deixaram de ser pagos, abandonaram o país e deixaram as máquinas parar ou avariar. Assim que a época das chuvas começou em Dezembro, o lixo acumulado e a água contaminada infiltraram-se no pouco fornecimento de água potável que ainda existia. E eis que estamos na segunda crise que assola o país.
Peste
A actual crise humanitária causada por um surto de várias doenças, nomeadamente febre amarela, não é fruto de qualquer “desígnio divino”: a mortandade que se vive em Angola é culpa do Governo do MPLA. Os montes de lixo não recolhido atraíram verdadeiros exércitos de ratos e outras pestes, os quais espalharam todo o tipo de doenças. A falta de água potável conduziu a surtos de cólera que estão a massacrar a população.
Não que Angola antes da crise tivesse um sistema de saúde com alguma qualidade. Angola é dos países com pior mortalidade infantil segundo as Nações Unidas: 167 mortos por cada 1.000 nascimentos. Angola consegue piores resultados em termos de saúde do que outros países africanos mais pobres em termos de recursos, ficando até atrás do Ruanda em termos de qualidade de saúde. A crise é tal que a Organização Mundial de Saúde, segundo informações provindas de Nova York, encontra-se sem vacinas para distribuir, o que agrava ainda mais a crise, visto que o Estado não consegue importar medicamentos devido à falta de dólares.
Os números oficiais do Estado em relação às mortes são essencialmente uma piada de mau gosto, e facilmente desmentidos pelas pessoas no terreno, ou até mesmo pelos números das autoridades locais. O Governo diz que morreram, até agora, 230 pessoas com febre amarela. Mas só na primeira semana de Abril foram registados mil óbitos nas morgues de Luanda, sendo que as autoridades tiveram de tirar o direito à folga dos coveiros para conseguir enterrar tal mortandade. O número de mortes ainda provavelmente será mais elevado, visto que muitos defuntos são atirados para valas comuns, ou são enterrados em cemitérios clandestinos. As cenas nos hospitais na periferia de Luanda são apocalípticas, com corpos a encher os corredores, enquanto que mães desesperadas choram pelos filhos. Não param de ser adicionados nomes na vasta lista de vítimas da “descolonização exemplar”.
Pode o regime sobreviver?
Este ano foi a primeira vez em que José Eduardo dos Santos, que está no poder há 36 anos, não fez um discurso do “Estado da Nação” na Assembleia Nacional. Em vez disso foi lido um breve texto pelo vice-Presidente Manuel Vicente, algo que inflamou os rumores de que o Presidente estará a sofrer de cancro, ou então que o MPLA o começa a abandonar. O regime certamente parece cercado.
Após anos de obediência silenciosa, o povo começou a revoltar-se, sendo os 15 activistas presos, cuja sentença foi recentemente lida num julgamento fantoche, o gume da espada da revolta popular contra décadas de corrupção e nepotismo. No seu discurso, o vice-Presidente ressalvou que “a situação política no nosso país é estável”. Por quanto mais tempo é a grande questão do momento.