Pandemia em Lisboa: Governo balança entre a leviandade e o abuso

Para o Governo, decretar medidas restritivas na área metropolitana da capital acarretava sempre o risco de perda de votos. Mas a realidade acabou por sobrepor-se à lógica eleitoral. A gota de água que obrigou Costa a actuar foram as festas ilegais com muitos jovens sem qualquer protecção. O caso da praia de Carcavelos, onde na noite de Sábado para Domingo a polícia teve de dispersar mais de mil jovens, foi a mais impressionante, mas estas iniciativas decorreram um pouco por todo o país.

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Com os números de infecções por Covid-19 a subirem na Grande Lisboa, e a atingirem pessoas mais jovens, gerou-se o pânico entre muitos profissionais de Saúde, principalmente nos três hospitais mais pressionados: Amadora, Loures e Setúbal (ver peça em caixa). Também a população andava inquieta com estes ajuntamentos sem regras, e com as forças policiais a terem de acorrer a variados locais depois de receberem queixas de populares. O aumento da inquietação era sustentado em números que referiam que o número dos infectados estava a aumentar de dia para dia na zona da Grande Lisboa.

A semana começou com António Costa a reunir com os presidentes dos cinco concelhos actualmente mais atingidos pela pandemia de Covid-19: Lisboa, Loures, Odivelas, Sintra e Amadora. O pano de fundo foi a necessidade de tomar medidas urgentes, que começaram logo na meia noite de segunda-feira. Depois do encontro, seria António Costa a anunciar medidas duras. 

Por que razão essas medidas não foram adoptadas antes? Para esta pergunta, que muitas pessoas fizeram em todo o País ao longo da semana anterior, só há uma resposta: num momento em que a alta popularidade do Governo começa a estar ensombrada por uma crise económica e social de grande dimensão, Costa resistiu enquanto pôde a tomar medidas impopulares na região da Grande Lisboa, a maior bolsa eleitoral do Continente. O líder socialista sabia que de cada vez que a expressão “cerca sanitária a Lisboa” fosse pronunciada, estaria a perder votos. E os votos têm sido, desde há muitos anos, a principal preocupação dos socialistas. Finalmente, a gravidade da situação impôs-se – e Costa teve de fazer o anúncio que durante uma semana quis evitar.

Foi decidida a manutenção do Estado de Calamidade em Odivelas e Amadora, assim como em algumas freguesias dos municípios de Lisboa, Loures e Sintra. Isto independentemente da decisão a tomar para todo o território nacional, e que ainda não era conhecida no fecho desta edição.

De acordo com António Costa, a manutenção do Estado de Calamidade vai abranger a totalidade dos concelhos da Amadora e de Odivelas, municípios que “apresentam uma área territorial bastante limitada e com uma enorme densidade populacional”. Nesses dois municípios, segundo o Primeiro-Ministro, “seria muito difícil proceder-se com eficácia a uma delimitação por freguesia”. “Mas relativamente a outros concelhos essa delimitação é possível fazer, caso do concelho de Loures, onde ficaram claramente identificadas duas freguesias: Camarate/Apelação e Sacavém/Prior Velho”, justificou.

Medidas duras

A Área Metropolitana de Lisboa (AML) ficou sujeita, a partir de terça-feira, a medidas mais restritivas. Assim, o Governo limita a um máximo de 10 pessoas, salvo se pertencerem à mesma família, “o acesso, circulação ou permanência em espaços frequentados pelo público, bem como as concentrações na via pública” na AML. Até agora, estes concelhos tinham a hipótese de reuniões até 20 pessoas, tal como permanece no resto do país.

De acordo com uma resolução aprovada na noite de segunda-feira e publicada no Diário da República, “todos os estabelecimentos de comércio a retalho e de prestação de serviços, bem como os que se encontrem em conjuntos comerciais”, encerram às 20:00 na Área Metropolitana de Lisboa. Excepções são os restaurantes, “exclusivamente para efeitos de serviço de refeições no próprio estabelecimento”, e também os restaurantes com serviço de ‘take away’ ou entrega no domicílio, “os quais não podem fornecer bebidas alcoólicas no âmbito dessa actividade”.

A venda de bebidas alcoólicas é também proibida “nas áreas de serviço ou nos postos de abastecimento de combustíveis” da AML. O consumo de álcool é ainda proibido “em espaços ao ar livre de acesso ao público”, excepto nas esplanadas dos estabelecimentos de restauração e bebidas devidamente licenciados, que apenas se podem manter abertos até às 20:00. Quem não acatar estas regras pode incorrer em crime de desobediência, que é punido no Código Penal com prisão até um ano ou 120 dias de multa.

O diploma destaca ainda o reforço da actividade operacional das forças e serviços de segurança e dos serviços de socorro da AML, que, em caso de necessidade, “pode ser reforçada” por “efectivos de outras áreas geográficas, em articulação com a estrutura municipal de protecção civil”. “A quem não respeitar alguma destas quatro regras, e logo na sequência da primeira violação, será determinado o crime de desobediência. A pessoa indicada será imediatamente autuada”. Será esta a forma de endurecer as medidas para reprimir comportamentos que põem em risco a Saúde Pública.

O Primeiro-Ministro anunciou ainda que, “no quadro da entrada em vigor no novo decreto-lei, PSP e GNR vão reforçar também a sua presença na rua, não apenas para a função pedagógica que têm exercido”, mas também com poderes acrescidos para autuarem organizadores e participantes em festas ou ajuntamentos ilegais – frisou António Costa, tendo perto de si o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita.

Nos próximos dias se verá se as forças policiais avançam mesmo com uma acção mais musculada, ou seja, autuando todos os que não cumprirem as regras estabelecidas para a Grande Lisboa. Refira-se que são vários os países que, após terem avançado no desconfinamento, estão a equacionar regressar a medidas mais duras, designadamente a Espanha e a Alemanha. Em ambos os casos verificou-se um aumento de surtos, um pouco à semelhança do que aconteceu em Pequim.

Cerca sanitária

O Primeiro-Ministro considerou que as novas medidas restritivas para a Área Metropolitana de Lisboa, abrangendo estabelecimentos e restringindo ajuntamentos, substituem os efeitos de uma eventual cerca sanitária, sem os inconvenientes desta para a actividade económica. Perante os jornalistas, o líder do Executivo rejeitou que haja “dois pesos e duas medidas no país” com a opção do Governo de não criar uma cerca sanitária nestes cinco concelhos da área metropolitana de Lisboa.

“Não há dois pesos e duas medidas, há dois momentos distintos e há uma circunstância completamente diversa. O aumento de casos de Covid-19 verifica-se sobretudo em 15 freguesias de cinco concelhos e em áreas residenciais de algumas dessas freguesias”, alegou o Primeiro-Ministro.

Por isso, segundo António Costa, com “as medidas de reforço das decisões da autoridade sanitária, de confinamento domiciliário obrigatório e de encerramento de estabelecimentos a partir das 20:00, assim como com o sancionamento dos ajuntamentos superiores a 10 pessoas, conseguir-se-á obter o efeito útil que poderia ser alcançado com uma cerca sanitária, mas sem todos os inconvenientes da cerca sanitária”.

“Nestas circunstâncias, não estamos a proibir de trabalhar quem está em condições de poder trabalhar, não proibimos a actividade comercial e controlam-se os riscos associados à difusão da pandemia de Covid-19”, sustentou o Primeiro-Ministro, tendo perto de si os ministros da Saúde, Marta Temido, e da Administração Interna, Eduardo Cabrita, assim como o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, este também coordenador do Governo para a Região de Lisboa e Vale do Tejo no combate à Covid-19.

No período de perguntas, António Costa defendeu que, no conjunto da região de Lisboa, a capacidade do Serviço Nacional de Saúde para internamentos e para cuidados intensivos está distante de se esgotar, razão pela qual “não são necessárias medidas acrescidas”. “Depois de se terem reforçado nas últimas semanas as equipas de saúde pública, que praticamente duplicaram, vamos agora reforçar quer os cuidados de saúde comunitários, quer a protecção civil municipal para vigilância”, disse.

Questionado sobre situações de contágio nos transportes públicos, o Primeiro-Ministro assegurou que “está normalizada a situação na CP”, mas que ao nível do transporte rodoviário “foi identificado um problema”. “Na proposta de Orçamento Suplementar em discussão na Assembleia da República, já está prevista a dotação necessária para que a Área Metropolitana de Lisboa possa renegociar com os operadores do transporte rodoviário o aumento da oferta”, assegurou o PM.

O apoio de Marcelo

Durante o fim-de-semana, o Presidente da República não se cansou de apelar ao cumprimento das regras sanitárias. Marcelo – que falava aos Media à margem de uma iniciativa no CCB – foi questionado sobre o que será preciso fazer para sensibilizar os jovens para não adoptarem comportamentos de risco, como as recentes festas. “A questão aplica-se aos jovens – eu falei nos jovens porque eles podem ser um bom exemplo -, mas aplica-se a todos. Na medida em que for necessário, se for muito necessário, terá de se aplicar medidas proporcionais ao que é necessário”, respondeu.

“Mas é evidente que se houver casos pontuais, específicos, em que haja necessidade de tomar medidas para determinadas localidades ou áreas de freguesias ou haja necessidade de tomar medidas mais duras em termos de intervenção das autoridades para impedir ajuntamentos e para responsabilizar por ajuntamentos, multiplicam-se as participações ao Ministério Público e as pessoas percebem – os jovens e não jovens – percebem que começam a ter um problema grave em cima dos seus ombros”, avisou. O PR estava a prever o desfecho que a situação sanitária na Grande Lisboa viria a ter.

Na perspectiva de Marcelo Rebelo de Sousa todos percebem que se está a fazer “uma abertura com cuidado, com cautela para não prejudicar a generalidade dos portugueses”. “Se há minorias, qualquer que seja a idade, que criam problemas à generalidade dos portugueses e não cumprem as regras, terá de se aplicar as regras, e o rigor será tanto maior quanto mais for a necessidade de ser rigoroso”, considerou. Questionado sobre o que está a falhar na mensagem de apelo às pessoas para que cumpram as regras, o Chefe de Estado considera que “há minorias que levam o desconfinamento a um ponto que ultrapassa as regras sanitárias que têm que ser cumpridas. Felizmente não é a maioria dos portugueses”, disse.

Marcelo Rebelo de Sousa socorreu-se dos números para evidenciar que há “uma diminuição progressiva do número de mortos e uma situação controlada em termos de internamentos e de cuidados intensivos”. “Simplesmente em números de infectados há a projecção ou de situações específicas em certas áreas geográficas, ou de precipitações de ajuntamento. São duas situações diferentes”, especificou.

Apelo aos jovens

O Presidente da República assegurou desde logo o apoio ao que o Governo decidisse depois da reunião com os autarcas da região de Lisboa, naquilo “que for necessário fazer para impedir o descontrolo” do desconfinamento. “Aquilo que o Governo entender na base da posição dos autarcas e, sobretudo, do juízo das autoridades sanitárias que deve ser feito, eu acompanho atentamente e só posso apoiar aquilo que for necessário fazer para impedir o descontrolo de um processo que tem vindo a ser cuidadosamente controlado”, defendeu.

Interrogado sobre se considera importante haver medidas mais restritivas neste momento, Marcelo Rebelo de Sousa foi peremptório: “como imaginam, o senhor Primeiro-Ministro e o Governo de um lado, e o Presidente da República por outro, estamos em contacto permanente”. “Não há, nesse aspecto, posições diferentes. Onde eu acho que é preciso ser-se mais duro, o Primeiro-Ministro acha que é preciso ser-se mais duro”.

Noutra iniciativa do Conselho Nacional de Juventude, o Presidente da República apelou aos jovens para que “ajudem ainda mais nesta fase”. “O apelo que vocês aqui fizeram, e que eu apoio, é: jovens, ajudem ainda mais nesta fase porque vocês têm a capacidade para dar mais exemplo do que os outros ainda e, portanto, dêem mais exemplo do que os outros”, disse. Acrescentou que as novas gerações têm obrigações acrescidas. “E têm um papel fundamental porque são mais jovens, têm de dar o exemplo. Têm de dar o exemplo no distanciamento, em não haver ajuntamentos, não fazendo aquilo que às vezes apetece fazer que é ir amontoados para as praias, para as festas e outras coisas assim e depois obrigam a que as autoridades crescentemente tenham de intervir”, advertiu.

Na perspetiva de Marcelo Rebelo de Sousa, “era mais fácil não ter de intervir, como aconteceu no confinamento voluntário”. “A larga maioria dos jovens percebe isto, mas há minorias que, de vez em quanto, nos jovens como nos não jovens, de repente, nesta fase de desconfinamento, acham que já passou a pandemia, que não há vírus”, afirmou. O aviso do Chefe de Estado é claro: “isso é falso. O vírus está aí”. ■