António Costa já percebeu que não irá longe com um Governo atado por arames e sem apoio leal e verdadeiro em S. Bento. Enquanto espera o momento de provocar eleições antecipadas, o líder do PS faz por sobreviver à sua própria contradição e tenta desmontar as armadilhas que o PC e o BE lhe vão deixando no caminho…
Vasco Pulido Valente chamou “geringonça” à precária e artificial solução de governo inventada por António Costa após as eleições de 4 de Outubro. Hoje, dois meses depois da tomada de posse, nenhuma outra expressão se lhe aplicaria com mais propriedade: tal como a caranguejola defeituosa que a palavra retrata, presa por arames e prestes a desmanchar-se, o XXI Governo Constitucional sobrevive por milagroso acaso – contra a lógica política, contra os credores e as leis da aritmética, contra a União Europeia e, por fim, contra os próprios parceiros de “frente popular” que um dia juraram apoiá-lo no Parlamento. Com camaradas destes, Costa bem pode dispensar inimigos. Mas também não tem mais do que aquilo que merece.
O Partido Comunista saiu das últimas eleições com uma dúvida existencial: o paupérrimo resultado do ex-padre Edgar Silva ter-se-ia ficado a dever ao candidato, ao desgaste infligido pelo Bloco de Esquerda, à sangria de votos úteis para Sampaio da Nóvoa ou (e é aqui que está o busílis) ao facto de o partido ter caído na tentação de apoiar um Governo do sistema capitalista, traindo assim a “linha justa” seguida pelo PC há quase um século?
Os cartazes de Edgar em pose albanesa começaram a desbotar e ficaram sem cor magenta muito antes do acto eleitoral. Seria isso prenúncio de que as bases comunistas lavavam as suas mãos dos acordos assinados às escondidas pelos camaradas Jerónimo e Costa numa sala esconsa do Parlamento?
O certo é que, desde a noite da vitória de Marcelo, o namoro PS-PC, de cujo arrulhar ouvíramos beijocas ternurentas pelos beirais da esquerda, esfriou repentinamente. Os comunistas, agora, falam em “intervir” com dureza no Orçamento para evitar que o Governo continue “condicionado” por Bruxelas. E não se cansam de sublinhar que esta é uma das “indisfarçáveis diferenças” que separam os dois partidos: másculo e probo, o PC não cede a “constrangimentos e condicionamentos externos”, ao contrário do PS, que lembra um passarito paralisado pela “pressão e chantagem que vem da União Europeia e de círculos nacionais a ela associados”.
Na perspectiva de um Congresso comunista agendado para o final do ano, Jerónimo de Sousa vai subindo a parada: quer aumentar já o salário mínimo para 600 euros, quer ver totalmente implementado o regime das 35 horas semanais na Função Pública, quer que o Governo que apoia bata o pé à “máfia” das notadoras financeiras, da troika e da UE. “Não nos desviaremos do caminho traçado”, avisou o secretário-geral, e “sairemos à rua contra tudo o que for negativo para os trabalhadores” (tradução: só tivemos 4% dos votos nas presidenciais, mas não é nas urnas “que se vê a força do PC”).
Jerónimo quase não acabara ainda de pronunciar estas palavras grossas quando, sexta-feira passada, o País saboreou mais uma greve da Função Pública. Foi coisa leve, desta vez, só para lembrar que o Tribunal Constitucional abriu caminho à reposição do horário de 35 horas na administração pública e que o PC está de olho no assunto. Efeitos práticos da greve, poucos se notaram – mas a mensagem ficou: o partido está pronto para voltar à rua, se necessário contra o Governo que “apoia”.
Para que este papel viril ganhasse toda a sua carga simbólica e alcançasse quem mais importava, Jerónimo aproveitou a última semana para lançar dardos desdenhosos à “candidata engraçadinha” que lhe roubou boa parte dos votos: Marisa Matias, o detestado rosto presidencial do odiado Bloco de Esquerda. Porque, na verdade, o Bloco de Esquerda é a grande dor de cabeça do Partido Comunista. É o Bloco que, desde há anos, vem corroendo a base social de apoio do PC, lhe vem desviando os jovens, lhe vem raptando o protagonismo no Parlamento, nas televisões, na rua – ainda por cima, valendo-se ultimamente do implacável friso de raparigas vistosas que tomaram o lugar do sacrístico Louçã e do enfadonho Rosas.
Esta rivalidade, intrínseca à alcova esquerdista, não passaria de ninharia de bastidores se não comportasse, em si mesma, aquilo a que os marxistas chamariam o germe da autodestruição da solução governamental tão laboriosamente alcançada por António Costa. Isto é: a guerrilha envolvendo o BE e o PC põe em risco a estabilidade (duvidosa logo na origem) da “geringonça” PS-PC-BE. Porque obriga o PC a “fugir para a frente”, radicalizando a sua agenda. E porque reforça o Bloco, de quem Costa irá cando cada vez mais dependente.
“As sementes desta campanha darão frutos”, disse a deslumbrada Marisa Matias após o sufrágio presidencial. Todas as figuras de proa do Bloco, de resto, andam deslumbradas: Marisa pelo resultado que obteve, Catarina Martins por passar por mentora desse sucesso e as manas Mortágua pelo seu papel de “caterpillars” da política nacional. Mas o seu deslumbramento (um pouco tolo e juvenil, é certo) não lhes retira força e capacidade de influência. Com os seus 10 por cento redondos e confirmados (o dobro do que obteve o ex-padre leninista do Comité Central do PC), o BE é agora quem segura o braço direito de António Costa: uns dias como flausina “engraçadinha”, outras como “camionista” que leva tudo à frente. A noção baça que a própria líder do Bloco tem do regime representativo está bem contida neste seu comentário ao veto do Presidente Cavaco às leis de adopção por homossexuais: “Terá de promulgar os diplomas, quer queira, quer não”. Comentou depois a historiadora Helena Matos: “O problema não é Catarina Martins dizer que o Presidente da República terá de promulgar ‘quer queira, quer não’, o problema é à esquerda e à direita aceitar-se essa alarvidade como um direito natural”.
Com o PC angustiado de um lado e o BE esfuziante do outro, António Costa tem de negociar com Bruxelas uma solução orçamental que satisfaça Jerónimo, não desiluda Catarina e não leve o Governo a perder a face perante os seus eleitores. “Nós não nos vergamos” – essa frase tão inútil quanto falsa – é uma jura que pode sair cara ao líder socialista. Isto é mais que sabido no PS, onde as várias tendências evitam pôr a cabeça de fora, aguardando com inquietação o desenrolar da novela. Só os mais abertamente contestatários ousam chamar os bois pelos nomes. O PS ou tem juízo ou vai ter dificuldades nas próximas eleições – avisa Álvaro Beleza, sempre lembrando que a aliança com a extrema-esquerda “não é consensual” no partido.
O aviso é oportuno: as presidenciais mostraram que a base de apoio do PS está a ser duplamente corroída: pelo Bloco, que satisfaz a ala socialista mais radical, e pelo centro-direita, que atrai os moderados. Mas Costa – é voz corrente no Largo do Rato – está convencido, não se sabe por quem, de que teria um bom resultado em eleições antecipadas, bastando-lhe para isso saber escolher o momento em que as provocaria. Ora, este excesso de confiança surge como sintoma da cegueira que parece ter-se apossado da direcção socialista: face à impossibilidade de fazer omeletas sem ovos, o PS está condenado ao puro malabarismo político (como se vê agora no caso da redução do IVA para cafés e restaurantes, que afinal será “faseada” e, para já, só englobará “certos” artigos). Mas os truques e habilidades saloias têm prazo limite e, na actual conjuntura, só evidenciam a fragilidade extrema da “geringonça” e o desespero do seu chefe.
Não admira, por isso, que Costa se tenha enganado duas vezes no Parlamento, chamando “senhor primeiro-ministro” a Passos Coelho. E ainda admira menos que nem sequer tenha dado pelo lapso freudiano…