Publicado a 27 de Janeiro

Paradoxo. O sistema republicano e socialista que Sócrates e Soares supostamente defendem consagra a igualdade de todos perante a lei e a separação de poderes. Mas o antigo primeiro-ministro recebe tratamento privilegiado e o antigo Presidente já “sentenciou” a sua total inocência, mesmo antes de um julgamento o declarar culpado ou inocente. O que ambos parecem questionar é a legitimidade do próprio regime que um deles ajudou a fundar…

A denúncia partiu do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional: José Sócrates estaria a receber “tratamento desigual” face aos restantes presos da cadeia de Évora. Em carta enviada à ministra da Justiça, os guardas prisionais afirmavam que a situação de privilégio estaria a criar um perigoso ambiente insurreccional dentro da prisão.

Os restantes detidos, também eles membros das Forças de Segurança (a aguardar julgamento ou a cumprir pena), estariam insatisfeitos com os privilégios de Sócrates, e os guardas prisionais do Estabelecimento Prisional de Évora, queixosos de uma grave falta de efectivos, afirmavam mesmo que, em caso de motim, seria difícil manter a ordem.

“Receamos que, a manterem-se estas situações, os comportamentos se alterem e o número de guardas e a sua capacidade não sejam suficientes para travar os reclusos”, lia-se no ofício enviado à governante.

Ainda segundo o Sindicato, Sócrates, tal como um lorde exilado, teria direito a fazer telefonemas no conforto do gabinete do director-adjunto do Estabelecimento Prisional, em vez de usar a cabine telefónica, como todos os outros reclusos. Regulamentarmente, cada preso só tem direito a cinco minutos de chamadas por dia, controlados por via de um cartão.

De acordo com a denúncia dos guardas prisionais, outros pequenos “luxos” permitidos a Sócrates foram o uso de botas de cano alto, de um edredon de cama e de um cachecol de um clube de futebol – tudo, aparentemente, proibido pelas regras prisionais.

O mal-estar a propósito dos alegados privilégios concedidos a Sócrates teve novos desenvolvimentos na semana que findou. Segundo o semanário ‘Sol’, ao antigo secretário-geral do PS foi, afinal, permitido conservar consigo o reconfortante cachecol, oferta amável de um conhecido “cromo” futebolístico chamado “Barbas” – mas as botas de cano alto e o edredon continuam proibidos.

No fim-de-semana, contudo, o Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional voltou à carga, reivindicando agora novas regras para impedir que os reclusos tenham acesso a telemóveis e reforçar o controlo das visitas nos estabelecimentos prisionais.

As “cortes” de Évora

Um dos aspectos mais mediáticos da manutenção de José Sócrates na cadeia de Évora tem sido, precisamente, a procissão de visitas a que as televisões dão ampla cobertura, mantendo aos portões da prisão um autêntico batalhão de câmaras e microfones.

Depois de semanas e semanas a filmarem personalidades socialistas que entravam e saíam, os repórteres tiveram no último fim-de-semana uma novidade para mostrar: uma pitoresca excursão de covilhanenses, mobilizados por um empresário amigo do detido nº 44, que chegaram em autocarros e se manifestaram, “em marcha silenciosa”, à porta do estabelecimento Prisional.

Desde que deu entrada na cadeia de Évora, José Sócrates recebe todos os dias visitas das mais variadas figuras do mundo socialista. Mário Soares tem sido um “habitué”, mas perante o antigo governante já compareceram também quase todos os nomes grados do PS.

O problema, no entanto, é que existe um limite de visitas e de tempo alotado às mesmas e, segundo o Sindicato dos Guardas Prisionais, Sócrates tem tido direito a um número muito mais elevado do que o permitido aos restantes reclusos.

Nos tempos da velha monarquia feudal, o local o monarca se encontrava era onde se situava a capital; e a corte, composta pelos áulicos e vassalos, seguia-o pelo país fora. Hoje, pelos vistos, a “capital” do Partido Socialista é em Évora.

Nas notícias da hora do jantar, António Costa e a sede do PS no Largo do Rato, em Lisboa, saem ofuscados pelos portões da cadeia de Évora. O actual líder do PS bem se esforça por “esquecer” que um seu antecessor (e chefe de um governo a que ele próprio pertenceu, como “número dois”) está preso em Évora. Mas de nada vale o esforço. As romarias continuam. E as “bocas” de Mário Soares também.

“Certeza” religiosa

Desde que Sócrates foi preso, Mário Soares jura a pés juntos que o antigo primeiro-ministro é um homem inocente. Esta não é a primeira vez que Soares defende um amigo até ao fim. Como já foi recordado neste jornal, Mário Soares manteve-se solidário com Bettino Craxi, político italiano acusado de corrupção, até este morrer, exilado na Tunísia, em fuga às forças da lei e da ordem italianas.

Soares, que faz gala em afirmar-se “republicano, socialista e laico”, parece ter alguma dificuldade em compreender que todos os cidadãos são iguais perante a lei. O antigo Presidente da República, hoje nonagenário, não se conforma com a permanência de Sócrates na prisão e, apesar de não ter estado presente nos interrogatórios que determinaram a medida de prisão preventiva, nem (supostamente) conhecer o processo, já decretou a sentença: “não há razão nenhuma” para a detenção de José Sócrates.

Logo aquando da primeira visita, Mário Soares tinha afirmado que a prisão de Sócrates era uma “infâmia” contra um “primeiro-ministro que foi exemplar” – afirmação que apenas reflecte a sua opinião pessoal, já que, no caso da avaliação de competência enquanto governante, José Sócrates foi julgado pelo tribunal da opinião pública em 2011, ano em que foi afastado do poder por via de eleições livres e transparentes.

Mas a inocência de Sócrates parece ser uma “certeza” quase religiosa entre uma parte dos socialistas de elite. Maria Barroso, por exemplo, considerou que “uma pessoa desta qualidade e honestidade só pode estar inocente”

Já em Janeiro, Soares voltou à ofensiva com alegações ainda mais duras. Segundo o ex-PR, José Sócrates é um “preso político” e a sua prisão preventiva “é muito, muito estranha” – não tendo, porém, esclarecido as razões de tal “estranheza”. Sabe-se, em todo o caso, que para uma parte dos dirigentes socialistas tudo não passa de uma “conspiração”.

O próprio José Sócrates parece acreditar nessa vasta e sinistra “cabala” contra si. Numa carta aberta (que os mesmos Media que ele ataca reproduziram na integra), Sócrates afirma-se vítima da “cobardia dos políticos” bem como da “cumplicidade de alguns jornalistas” e do “cinismo das faculdades e dos professores de Direito”.

O antigo secretário-geral do PS refere-se ainda ao “desprezo que as pessoas decentes têm por isto tudo”, ignorando possivelmente o facto de uma sondagem do matutino ‘Correio da Manhã’ indicar que 63% dos portugueses acreditam que Sócrates é culpado, enquanto apenas 16,8% acreditam na sua inocência (os restantes 20% não tiveram opinião formada). Segundo a sondagem, apenas 37,8% dos eleitores do seu próprio partido acreditam na sua inocência.

Igual aos outros

Já José Lello, deputado do Partido Socialista, preferiu referir-se, compungido, ao frio que se sente na prisão de Évora, bem como ao clima depressivo do estabelecimento, reforçando a “narrativa” de Sócrates como um mártir fechado num calabouço medieval, ou mesmo num “Gulag” soviético, em vez de numa prisão de um moderno Estado ocidental.

Em Dezembro, José Alho, presidente da Associação Socioprofissional Independente da Guarda, lamentou as condições dos calabouços de Évora que, nas suas palavras, “não são as melhores”, tratando-se de uma “prisão pequena, que está sobrelotada”.

Mas seria difícil, ou mesmo impossível, descobrir uma cadeia em Portugal que não esteja sobrelotada. Em 2011, as prisões portuguesas tinham 99% de taxa de ocupação, e algumas estavam mesmo sobrelotadas com 122% de taxa de ocupação, segundo dados da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais. Estas são as condições que todos os presos, até mesmo os presos preventivos, têm de suportar.

Longe da realidade de um “Gulag”, Sócrates tem direito a uma cela individual numa cadeia para presos especiais (entre eles membros das Forças de Segurança) que dispõe de ginásio, sala de actividades, biblioteca e campo de futebol. Ao contrário de outros Estabelecimentos Prisionais, o ambiente é considerado calmo e pacífico.

É nestas condições que o cidadão José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa aguarda julgamento pelos alegados crimes de corrupção, fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção.

Para todos os efeitos, o tratamento concedido a Sócrates não é de todo diferente do que foi dado a outras figuras públicas e políticas que também passaram pela Justiça. Duarte Lima, ex-deputado do PSD, foi detido preventivamente durante vários meses, por ordem do mesmo juiz que mandou deter Sócrates. Foi julgado e foi condenado com base nas provas apresentadas.

O mesmo aconteceu com Isaltino Morais, também do PSD. Nessa altura, no entanto, pouco se falou de “prisões políticas”, Mário Soares certamente não considerou os dois casos como “uma infâmia”. Dois pesos e duas medidas?

Longe de ser vítima de um regime especialmente opressivo, José Sócrates encontra-se submetido à mesma lei que rege os restantes cidadãos do País. Foi alvo de uma medida da coacção legal, determinada por um magistrado em pleno poder de funções. Será brevemente sujeito a um julgamento justo, em regime de igualdade com todos os restantes concidadãos e com pleno direito a apresentar a sua defesa.

É necessário também referir que José Sócrates será julgado por ilegalidades que alegadamente terá cometido, conforme previsto na legislação: não está em Tribunal a responder pela sua ideologia ou pelas suas escolhas políticas.

Pai do regime

Mas, de todas as formas, Mário Soares pediu a intervenção política de Cavaco Silva, visto considerar que a detenção de Sócrates é um assunto que interessa a “um país inteiro”. Poucos dias depois, não tendo obtido qualquer reacção de Belém, Soares chamou ao actual Presidente da República “salazarista convicto” – alegação que até comentadores da própria esquerda já vieram lamentar, por não ser verdadeira e por não ficar bem na boca de um antigo Chefe do Estado. Fica por compreender o que Mário Soares pretende do regime que ele próprio ajudou a fundar.

Justa ou injustamente, Mário Soares tem sido geralmente considerado “o pai” do actual regime, com um grau de intervenção muito superior ao de outros grandes líderes políticos como Francisco Sá Carneiro. Embora tenha nascido do golpe de 25 de Abril de 1974, a III República como existe hoje é fruto da Constituição de 1976, texto elaborado e aprovado por Mário Soares e pelo seu Partido Socialista, entre vários outros, com excepção do CDS-PP.

Surpreendem, assim, as posições assumidas por tantos elementos do Partido Socialista e pelo próprio Soares, que contradizem as suas origens. Ao exigir uma tomada de posição do Presidente da República, Mário Soares está a pedir a anulação de um dos mais básicos princípios constitucionais, presente em todas as leis supremas do país desde a Carta Constitucional de 1826 à Constituição de 1976, passando pelas Constituições de 1910 e 1933: a separação estrita e expressa entre o Poder Judicial, o Poder Executivo e o Poder Legislativo.

Das duas, uma: ou Mário Soares e José Sócrates acham que merecem tratamento preferencial, ou então consideram que a República actual é um regime em que a justiça e a democracia não existem. No segundo caso, tal reconhecimento constituiria, para o histórico dirigente socialista, um duro golpe: seria admitir, por fim, que o regime que ele criou foi mal concebido. Seria admitir que o regime que ele liderou, e do qual foi Presidente, é um falhanço nacional.

No segundo caso, seria admitir o paradoxo sintetizado por George Orwell no livro “O Triunfo dos Porcos”: que “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.

No meio de tudo isto, o actual líder socialista, António Costa, tenta não perder o pé. Apesar de ter visitado Sócrates uma (única) vez, quando lhe perguntaram se acreditava na inocência do antigo secretário-geral, esquivou-se às “certezas absolutas” e respondeu, com palavras medidas, que Sócrates ia “lutar pelo que acredita ser a sua verdade”.