PRR – Plano de Recuperação e Resiliência (1): Um vazio estratégico

“Chamar estratégia a esta imensa salada em que cabe tudo é um insulto à inteligência dos portugueses. Pensar que daqui sairá um impulso reformador com algum critério é pura ilusão”

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Ao ler este plano do Governo, foi frequente não saber se deveria rir ou chorar e o que lamento é que aquelas 146 páginas não sejam lidas por todos os portugueses para poderem avaliar a dimensão do absurdo. Trata-se de um plano imoral, palavroso e que perde a oportunidade de gastar o dinheiro disponibilizado pela União Europeia de forma a relançar um modelo económico e social sustentável. Depois de ter lido o catálogo de ideias de António Costa Silva que, aparentemente, foi o inspirador desta obra de arte do Governo, já nada me surpreende.

Inicialmente, fiquei indeciso se conseguiria escrever alguma coisa de útil sobre um texto inútil. Na dúvida, decidi facilitar a vida dos leitores e usar a imensidão dos investimentos propostos pelo Governo, para tornar mais visível o vazio estratégico do documento.

Pessoalmente, parece-me evidente que espalhar milhares de milhões de euros por centenas de iniciativas, independentemente de serem ou não válidas, alterará muito pouco o processo de desenvolvimento e modernização do País, porque apesar de no texto se falar abundantemente de estratégia, não se vislumbra nenhuma orientação estratégica e é mais do mesmo, navegação à vista destinada a contentar toda a gente. Há propostas para todos os gostos, muitas das quais teriam cabimento nos orçamentos anuais do Estado, mas incompreensíveis num plano cujo fim seria reorientar o nosso processo de desenvolvimento depois de vinte anos de estagnação. Pessoalmente, apresentei há anos uma estratégia para Portugal e fi-lo em meia página do meu livro “Uma Estratégia para Portugal”. Limitei-me a seguir o que os japoneses fizeram em 1946 e 1956 com a finalidade de darem uma nova orientação ao seu país depois da derrota militar. Infelizmente, ninguém no Governo segue a experiência japonesa.

Como prometido, limito-me a copiar uma parte do que vem proposto no PRR, deixando aos leitores o julgamento sobre a sua validade e se devem acreditar, ou não, na sua execução. Além de deixar à avaliação dos leitores se este exercício governamental contribuirá para alterar o cenário de vinte anos de queda da economia portuguesa no contexto dos países da União Europeia. Nomeadamente, porque a esmagadora maioria desses países se preocupa em fazer o que consideram estrategicamente determinante para o seu futuro. Vejamos, pois, o que nos é proposto:

Componente 1: Saúde (1.383M€)

  • Cuidados de saúde primários – 463M €
  • Conclusão da Reforma da Saúde Mental (85M€)
  • Equipamentos dos Hospitais Seixal, Sintra, Lisboa (196 M€)
  • Fortalecimento do Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira (89M€)
  • Transição Digital da Saúde (300M€)
  • Digitalização na área da Saúde na Madeira (15M€)
  • Hospital Digital da Região Autónoma dos Açores (30M€)

Componente 2: Habitação (1.633M€) + 1.149 (emp.)  

  • Programa de Apoio ao Acesso à Habitação (1.251M€)
  • Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário (186 M€)
  • Reforço da oferta de habitação apoiada na Região Autónoma da Madeira (136M€)
  • Aumentar as condições habitacionais do parque habitacional dos Açores (60M€)
  • Parque público de habitação a custos acessíveis (774 M€)
  • Alojamento Estudantil a custos acessíveis (375 M€)

Componente 3: Respostas sociais (583M€)

  • Nova Geração de Equipamentos e Respostas Sociais para a 1ª infância, Pessoas idosas e Pessoas com deficiência (417M€)
  • Acessibilidades 360º (45M€)
  • Plataforma + Acesso (3M€)
  • Fortalecimento das Respostas Sociais na Região Autónoma da Madeira (83M€) 
  • Implementar a Estratégia Regional de Combate à Pobreza e Exclusão Social – Redes de Apoio Social nos Açores (35M€)

Componente 4: Eliminação das bolsas de pobreza em Áreas Metropolitanas (250M€)

  • Operações integradas em comunidades desfavorecidas nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto (250 M€)

Componente 5: Investimento e inovação (1.396 M€)

  • Agendas/Alianças mobilizadoras de Reindustrialização (558M€)
  • Agendas/Alianças Verdes para a Reindustrialização (372M€)
  • Missão interface-renovação da rede de suporte científico e tecnológico (186M€)
  • Agenda de investigação e inovação para a sustentabilidade da agricultura, alimentação e agroindústria – Agenda de inovação para a agricultura 20/30 (93M€)
  • Desenvolvimento do “Cluster do Mar dos Açores” (32M€)
  • Recapitalizar o Sistema Empresarial dos Açores (125 M€)
  • Relançamento económico da Agricultura Açoriana (30M€)
  • Capitalização de empresas e resiliência financeira/BPF (1.250M€)

Componente 6: Qualificações e competências

  • Modernização da oferta e dos estabelecimentos de ensino e da formação profissional (710M€)
  • Agenda de promoção do trabalho digno (230M€)
  • Incentivo Adultos (250M€)
  • Impulso jovem (140M€)
  • Qualificação de adultos e aprendizagem ao longo da vida (29M€)

Componente 7: Infraestruturas (833M€)

  • Áreas de Acolhimento Industrial (AAE) (110M€) 
  • Missing links e Aumento de capacidade da Rede (362,9 M€)
  • Ligações transfronteiriças (110M€)
  • Áreas de Acolhimento Empresarial(AAE) (190M€)
  • Circuitos logísticos-Rede Viária Regional dos Açores (60M€)

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Cheguei apenas a meio da tarefa e deixarei para a semana tratar o que resta, a fim de os leitores ficarem com uma ideia dos objectivos do plano. Faço notar que cada um destes investimentos orçamentados é ainda dividido por cinco, dez ou mais sub-propostas não quantificadas. Ou seja, como escrevi no início, são centenas das mais diversas iniciativas e chamar a isso estratégia é um insulto à inteligência dos portugueses.

De facto, trata-se de uma imensa salada em que cabe tudo. Pensar que daqui sairá um impulso reformador com algum critério é pura ilusão. Portugal precisa de três ou quatro grandes reformas, como precisa de dois ou três grandes objectivos estratégicos facilmente compreensíveis para todos os portugueses, nomeadamente para os empresários e outros agentes de mudança. Seria preciso mobilizar o País e este PRR não mobiliza ninguém em posição de fazer a diferença.

Dou um exemplo: há vinte anos que defendo a criação de uma rede de creches e de escolas do pré-escolar de elevada qualidade, com educadores qualificados, alimentação e transporte, para interromper o ciclo vicioso da pobreza e da ignorância, permitindo que as nossas crianças venham a ser adultos capazes de viverem as suas vidas independentes do Estado. Ora o que este plano consegue é exactamente o contrário: à míngua de qualificações significativas, o Governo dá dinheiro para tornar os portugueses cada vez mais dependentes das esmolas dos governos. ■