Há uma certa esquerda que defende cada uma das suas causas separadamente de todas as outras, o que obviamente é pouco sério, porque essas causas podem ser contraditórias entre si. Por exemplo, os quatro dias por semana serão possíveis com melhores salários e com a elevação do nível de vida dos portugueses que todos defendemos? Essa esquerda parte do princípio de que a generalidade das pessoas não vê a contradição existente entre as propostas lançadas para o ar e a realidade da vida dos trabalhadores que precisam urgentemente de melhores salários, de melhor nível de vida e não, necessariamente, de menos dias de trabalho, pelo menos no tempo das nossas vidas. Por exemplo, ao defenderem menos horas de trabalho, nomeadamente nas pequenas e médias empresas, as quais têm níveis de preços muito baixos e baixa produtividade, conduziria a que os empresários e os trabalhadores dessas empresas não pudessem esperar a melhoria dos salários, porque as empresas não têm rendimentos para isso. O certo é que na maioria dessas pequenas e médias empresas, mais de 90% do tecido empresarial português, os próprios empresários gostariam de trabalhar menos e de ganhar mais e se o não fazem, o que estaria ao alcance da sua decisão, é porque não podem.
Por outro lado, supondo que toda a economia, ou apenas as grandes empresas portuguesas, se poderiam permitir trabalhar apenas quatro dias por semana, a produção portuguesa, como um todo, seria menor e a criação da riqueza nacional, que já é baixa, reduzir-se-ia ainda mais, além de que as exportações, que estão muito atrás dos outros países da nossa dimensão, tornariam a balança comercial ainda pior.
Mas mais, na suposição de que os países mais ricos, mais industrializados, mais exportadores e com melhores níveis salariais, poderiam passar a trabalhar apenas quatro dias, não seria mais consequente e mais bonito, de acordo com os ideais de igualdade universal da esquerda, propor trabalhar os cinco dias como agora e usar a produção do quinto dia para apoiar os trabalhadores dos países mais pobres, que estão a morrer sem liberdade, sem alimentação e sem médicos? Ou, já agora, para permitir financiar todas aquelas outras causas que a esquerda defende, como a descarbonização do meio ambiente, a cultura disponível para todos, mais médicos e mais professores, ou, simplesmente, para trabalhar menos horas, porque alguém terá de pagar o aumento do consumo de uma sociedade com mais tempo para gastar?
Ou seja, repito, a esquerda que defende os quatro dias de trabalho, se quiser ser consequente, terá de avaliar essa decisão no contexto da aplicação da totalidade das suas causas e propostas. Não pode ou não deve propor ao mesmo tempo causas que se contradigam umas às outras, ou coloca-se na posição de nunca poder aceder à governação, porque qualquer pessoa com dois dedos de testa percebe facilmente que as propostas dessa esquerda são apenas conversa fiada. Ou que, em alternativa, a ideia de uma tal esquerda não é governar, mas apenas destruir quem governa e criar as condições para a revolução com que sonham.
Entretanto, todos conhecemos uma outra versão deste tema: as propostas destinam-se a um outro modelo de sociedade, onde os cidadãos melhor educados, mais sensíveis ao bem estar da comunidade, melhor formados, mais disponíveis para consumir muito menos, mais receptivos a terem menos filhos, a não ter automóvel, a não usar aviões nas viagens, a consumir menos pepel, menos plásticos, menos carne, menos peixe e a não usar pesticidas, etc., etc., porque tudo isso, em conjunto, permitirá trabalhar menos ou não trabalhar de todo.
Claro que a pergunta óbvia é a de como convencer os homens e as mulheres do nosso tempo a adoptar e a praticar esses objectivos? Na história recente encontramos a resposta a esta questão no caso da União Soviética, em que então já se propunha o homem novo, ainda que para isso tivessem assassinado e mandado para Sibéria uns milhões de seres humanos que não concordavam e, mesmo assim, a ideia não conseguiu sobreviver.
Em minha defesa, deixo aqui claro que aceito sem qualquer reserva muitas das causas propostas pela esquerda que refiro. Aceito e até gostaria de trabalhar menos, não se desse o caso de estar a ser mal governado, ter uma vida mais modesta do que no passado, viajar menos, já quase não como carne, separo o lixo disciplinadamente, tenho um carro eléctrico e defendo encarniçadamente o transporte ferroviário e colectivo e combati as auto-estradas de José Sócrates. Mais, defendi o financiamento da educação e da saúde nos países africanos há mais de vinte anos, numa moção a um congresso do PS, partido que não aceitou a ideia; sou contra a corrupção, contra a propaganda política mentirosa e até enviei uma carta ao António Guterres a propor o financiamento das Nações Unidas através de um imposto pago por todos os cidadãos e a proibição dos paraísos fiscais e da venda de armas.
Em tudo isto tenho um pequeno problema, o António Guterres não aceitou as minhas propostas, o PS também não e até ganhou a última eleição com maioria absoluta. Estas e outras razões, convenceram-me de várias coisas: (1) pugnar por mais e melhor democracia e melhor educação, dando prioridade às crianças, que é onde tudo começa; (2) defender a liberdade porque não pretendo obrigar ninguém a aceitar o que não quiser; (3) acredito no conhecimento e na ciência como a forma útil de resolver muitas das causas propostas pela esquerda, como os quatro dias de trabalho, mas antes disso ainda temos por resolver o milhão de portugueses sem médico de família e a ausência de transporte escolar; (4) gostaria ainda, mas não consigo, limitar as asneiras que os governos portugueses têm feito, pelo menos nos últimos vinte anos, e que, infelizmente, continuam a fazer, como é o caso da aceitação dos quatro dias de trabalho por semana; (5) para isso defendo mais democracia e menos autoritarismo; (6) finalmente, já não acredito na revolução para resolver os grandes problemas das sociedades humanas, como a doença, a pobreza e a ausência de liberdade.
Termino com a ideia de que a esquerda que refiro pode ser mais útil à sociedade, porque pode trazer novas ideias e novos conceitos que nos façam pensar, mas que seria ainda mais útil se limitassem o nível de fantasia em que vivem e se se dedicassem mais a adaptar as suas propostas à realidade e às probabilidades de aceitação das sociedades em que vivemos, ou seja, a aceitação plena do método democrático, com bom senso e sem fantasias revolucionárias. ■