A Miranda devia o seu nome a duas razões fundamentais: em primeiro lugar, inequivocamente, ao facto de o seu pai ser um amante de Shakespeare e ter uma especial predilecção por “The Tempest” e, segundo, porque, filha de um casal luso-britânico a residir em Cambridge, fora registada como súbdita de Sua Majestade, já que, à época do seu nascimento, a onomástica portuguesa se bem que aceitasse que uma criança indefesa e não medieval pudesse ser chamada de Mirandolina, não reconhecia Miranda como nome próprio. Nunca conheceu pessoalmente outra Miranda, ainda que se tivesse cruzado com duas famílias Miranda, uma em Portugal e outra em Espanha, que envergavam o apelido com brios raianos, como é bom de ver.
Agora, do alto dos seus cinquenta e cinco anos acabados de fazer e ainda mal acomodada à redondeza pouco afável do número, começava a ver a vida de outra maneira e a aperceber-se de que, se não usasse muito cuidado e rédea curta, iria avinagrar-se mais dia menos dia e, pior anda, que esse era um vinagre tão insidioso, embora intrusivo e transgressor, que mal se daria conta do processo.
Andava sem paciência – não valia a pena olhar para o lado. Mas é que andava mesmo sem paciência para quase tudo, com a memória irrequieta a reclamar-lhe outro ser, outro estar. Até o trabalho de que tanto gostava agora lhe parecia uma penitência áspera de cumprir. Até o marido, que ainda lhe acolhia pachorrentamente as pressas, as distracções e as tiradas de mau humor, lhe tolhia os nervos, por calmo. Até os amigos começavam a parecer-lhe rotineiros, cansados que andavam, como ela, de tanta conta fazer à vida, uns por reformados, outros por desempregados e outros ainda por terem escorrido a alma pelo crivo do desânimo.
Aquela não era ela. Até ali, sempre fizera jus a cada vogal do seu nome e era conhecida a sua gargalhada fácil e a sua natural predisposição para a boa disposição. Talvez fosse do calor, talvez fosse da redondeza pouco afável dos seus cinquenta e cinco anos acabados de fazer, que aquele cinco dobrado soava-lhe a vertigem, talvez fosse apenas da fealdade que o mundo vestira. Talvez…
Mas não. Não podia ser. Pegou em si mesma e no seu predestinado Fernando, encheu o olhar com maresia e fitou-o com olhos frescos, como já não fazia há um bom par de anos. Depois, suspirou muito, muito fundo e olhando para todo o seu mundo, já de olhos bem lavados, riu alto e, como a outra, proclamou: O brave new world!