Zona de conflitos permanentes, formada de encontros entre sumérios, assírios, babilónios, persas, hebreus, gregos, medos, partos, romanos, turcos, ingleses, franceses, americanos, árabes, curdos, judeus modernos, libaneses antigos e modernos, russos, alauitas, e entre religiões e facções, alauitas, cristãos drusos, sunitas e xiitas, a actual Síria é palco de uma complexa teia política.
A Síria desde há mais de cinquenta anos é parte da esfera de influência russa, do seu, digamos assim, cordão sanitário.
As potências ocidentais, França, Alemanha, Inglaterra e, sobretudo, Estados Unidos, julgando que a Rússia constituía uma espécie de vácuo sem pulso geoestratégico, tentaram desestabilizar a região apoiando os inimigos do Estado sírio, aliás a única estrutura coerente e capaz de contrariar na região os perigos do fundamentalismo islâmico radical, apoiado generosamente pela Arábia Saudita.
O poder na Síria é exercido pela tribo Alauita, uma facção do xiismo que mistura elementos místicos do cristianismo, reminiscente do tempo das cruzadas, tribo muito pobre que muito tempo ficou isolada nas montanhas e que nas últimas décadas veio a ocupar o poder, muito por mercê de a actividade militar ser considerada pouco atractiva pelas altas classes sunitas, mais interessadas no comércio, dando de bandeja aos oficiais alauitas a possibilidade de controlarem as forças armadas e ao clã Assad, de origem militar, de tomar o poder. A Arábia dos Saud, único país do mundo em que o nome do país vem do apelido dos chefes tribais que tomaram conta do poder passando a designar-se por “reis”, detesta o xiismo e, pior ainda, as facções menos ortodoxas, como o alauismo, tem pago generosamente aos insurgentes, com o apoio tácito dos Estados Unidos, na tentativa de subverter o poder dos Assad na vizinha Síria.
Os Estados Unidos têm pago e treinado grupos ligados à Al-Qaeda, suprema ironia, para combaterem os Assad e o Estado Sírio. Esta louca aventura provocou a irrupção do autoproclamado Estado Islâmico, um grupo de loucos, ou talvez não, que serve de ponta de lança dos interesses sauditas contra o Estado Sírio, o Xiismo e, em última análise, o Irão, inimigo figadal dos sauditas.
Sem uma verdadeira oposição, com as potências ocidentais em jogos estratégicos e militares que mais parecem jogos de garotos à volta de uma consola, o Estado Sírio viu-se só contra o ISIS, sendo os ataques aéreos da coligação uma espécie de cócegas para disfarçar os reais interesses das potências ocidentais, que visam ocupar a esfera de poder russa, ampliar as suas reservas de petróleo e controlar um ponto-chave do globo. Se para isso é preciso apoiar e ter o apoio, o que é completamente contra-natura, da Arábia Saudita, que fornece petróleo e regula a favor dos ocidentais o mercado, e a Turquia, que finge que ataca o ISIS, mas que, de facto, está mais preocupada com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, não há o menor problema moral.
É chocante ver Obama dizer que Assad tem de sair. Não há qualquer critério moral, apenas o interesse; se existisse critério moral, os americanos teriam de rejeitar a Arábia Saudita como aliado. O único critério é que Assad tem dado bases aos russos.
Depois desta política de equilibrismo aventureiro, que tem custado centenas de milhares de vítimas e uma crise sem precedentes de imigração na Europa e uma terrível desgraça humanitária, as contas têm saído furadas às potências ocidentais: Assad não caiu de maduro e os russos têm ainda excelentes aviões que começaram a colocar no terreno. Logo depois das declarações de Obama de que a entrada dos russos provocaria o caos, os americanos lembraram-se de bombardear um hospital, com um hectare, e matar uma dezena de médicos ocidentais dos “Médicos sem Fronteira”; dir-se-ia que foi um espião russo disfarçado de general americano que organizou o massacre para desacreditar os Estados Unidos!
Resta a irónica esperança de os russos darem àquela gente um arremedo de segurança, ténue esperança, conhecendo Putin. De qualquer forma, é a única forma de lidar com o problema: consolidar o Estado, eliminar o caos e segurar o ISIS. O tempo, esse grande escritor, dirá quem tinha razão.