3. Quanto a Vilém Flusser, atentemos na sua primeira grande obra, Língua e Realidade (São Paulo, Annablume, 1963) e, em particular, no seguinte excerto, em que as potencialidades filosóficas da língua portuguesa nos aparecem maximamente valorizadas:
“De acordo com a estrutura do português, surge o significado futuro quando o infinitivo de um verbo é acrescido de um sufixo correspondente ao verbo haver conjugado no presente. O verbo haver significa originalmente algo muito próximo de ter. Houve, entretanto, um sutil deslocamento da estrutura da língua portuguesa, que está se processando ainda. No curso dessa transformação, o verbo ter vem usurpando o lugar de haver. Os dois refúgios mais importantes do haver são, atualmente, o há impessoal e a formação do futuro. Ambos estão periclitando. O há impessoal está ameaçado pelo tem e a formação do futuro pelo verbo ir [farei = vou fazer). Muito provavelmente o haver será finalmente deposto. No caso do futuro isto acontecerá provavelmente porque a tendência da língua é substituir sufixos por verbos auxiliares. Estamos, portanto, no caso do português, diante de um conceito de futuro em vias de transformação.
Consideremos, em primeiro lugar, a forma antiga. O verbo haver, que faz surgir o significado do futuro, sugere uma propriedade, uma qualidade. Se hei algo, isto é, se tenho algo, esse algo é minha propriedade e qualifica a minha posição. O futuro, nesta forma portuguesa, é, portanto, uma propriedade, uma qualidade do presente. Se considerarmos que uma forma do passado em português é formada pelo verbo auxiliar ter, por exemplo, tenho ido, devemos concluir que este conceito acidental e qualitativo de tempo pervade toda uma face da categoria tempo na ontologia da língua portuguesa. Lembro, neste contexto, as categorias aristotélicas mencionadas no início deste capítulo. O tempo figura entre elas, como um dos acidentes. A língua portuguesa concorda, neste aspecto, com Aristóteles. As línguas alemã e inglesa discordam dele, já que nelas o futuro, conforme foi ilustrado, não é acidental, mas substancial. Entretanto, em português, o tempo revela-se como sendo uma qualidade, uma propriedade da substância. Não é, portanto, do ponto de vista aristotélico, uma categoria independente, mas uma subcategoria, já que o sistema categorial aristotélico prevê a categoria qualidade. O conceito que rege o meu pensamento quando digo irei não é, pois, categoria no sentido restrito. Não estou, propriamente, pensando em tempo. Estou pensando em uma propriedade minha, a saber, no ir que tenho ao meu dispor.
Neste sentido restrito, o tempo não é uma categoria da língua portuguesa, como o é da língua inglesa. Em português eu tenho futuro, como força, saúde ou dinheiro. Se não estou consciente disso, se não me dou conta dessa falta de categoria tempo em português, isso se deve ao arcaísmo do verbo haver, que esconde o significado ter. Somente uma análise fenomenológica como aqui esboçada faz ressurgir esse significado.” (pp. 115-117).
Tudo isto para concluir: “Esta autêntica revolução na estrutura ontológica do português é uma bela ilustração da força criadora que a língua possui.” (p. 117). ■
Agenda MIL: “Comunidades imaginadas: a Lusofonia”, Aula Aberta de Estudos Culturais, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 15 de Fevereiro de 2022.