Houve sempre uma dimensão espiritual no pensamento de Agostinho da Silva (Porto, 1906-Lisboa, 1994), o que desde logo justifica o seu não completo alinhamento com o movimento (tendencialmente mais materialista) da Seara Nova, onde Agostinho da Silva começou a emergir, nos anos 30, como uma das figuras axiais da cultura portuguesa do século XX, após a sua formação na Faculdade de Letras do Porto, fundada por Leonardo Coimbra. Já na década de quarenta, os dois opúsculos O Cristianismo (1942) e Doutrina Cristã (1943) confirmam essa dimensão mais espiritual do seu pensamento, que, partindo do cristianismo, sempre procurou estabelecer pontes com outras formas de espiritualidade, nomeadamente orientais – por mais que, por exemplo, em relação ao budismo, o tivesse definido, nessa altura, como “uma religião de pessimistas e de cépticos” (O Budismo, 1940).
Foi, contudo, no Brasil, para onde partiu em meados da década de quarenta – e onde se fixou até ao final da década de sessenta –, que Agostinho da Silva plenamente expressou essa dimensão mais espiritual do seu pensamento, em articulação com a sua “ideia de Portugal” – não enquanto país mas, mais precisamente, enquanto “ideia a difundir pelo mundo”, bem patente em duas obras publicadas na década de cinquenta – Reflexão à margem da literatura portuguesa (1957) e Um Fernando Pessoa (1959), onde escreveu: “É um Portugal que não tem seu centro em parte alguma e cuja periferia será marcada pela expansão de sua língua e da sua cultura de Pax in excelsis que ela levar consigo (…): [é] o Portugal da Hora, o Portugal de Bandarra, de Vieira e da Mensagem”.
Retomando e desenvolvendo o ideal de Quinto Império de Vieira e Pessoa, Agostinho da Silva vai assim propor a Pátria de Língua Portuguesa como uma “pátria ecuménica” (Presença de Portugal, 1962), em que pudessem conviver harmoniosamente todas as formas de espiritualidade – por mais que, por esses tempos, Agostinho da Silva visse mais no Brasil e não tanto em Portugal o potencial para a concretização desse ideal – como chegou a escrever, ainda na sua Reflexão à margem da literatura portuguesa: “…que tome o Brasil inteiramente sobre si, como parte de seu destino histórico, a tarefa de, guardando o que Portugal teve de melhor e não pôde plenamente realizar e juntando-lhe todos os outros elementos universais que entraram em sua grande síntese, oferecer ao mundo um modelo de vida em que se entrelaçam numa perfeita harmonia os fundamentais impulsos humanos de produzir beleza, de amar os homens e de louvar a Deus (…).”
Nesta passagem, encontramos, em síntese, as três traves mestras dessa dimensão mais espiritual do pensamento de Agostinho da Silva – a saber: I) uma concepção de espiritualidade que não se afirma por contraposição à materialidade, já patente nos dois opúsculos O Cristianismo (1942) e Doutrina Cristã (1943), e que se pode caracterizar como uma concepção “panteísta”; II) uma concepção de espiritualidade que se concretiza sobretudo como um “modelo de vida”, mas numa lógica de exemplarismo ético e não, de todo, numa lógica de proselitismo; III) uma concepção de espiritualidade que não ignora nem, muito menos, despreza o contexto histórico-cultural, antes pelo contrário. Daí, enfim, a sua recuperação da “Teoria das Três Idades (do Pai, do Filho e do Espírito Santo)”, de Joaquim de Flora, e a sua atenção, muito particular, ao “Culto do Espírito Santo” – na sua perspectiva, um dos traços mais distintivos da cultura de língua portuguesa, diríamos hoje, da cultura lusófona. ■
Agenda MIL – 26 de Setembro, 14h30, no Palacete Viscondes de Balsemão (Porto): Regresso das novas “Tertúlias de cultura portuguesa”.