Há quatro décadas, os portugueses residentes nas Províncias Ultramarinas chegavam à Metrópole fugidos à guerra e ao caos que se instalava em África. Chamaram-lhes “retornados”. Hoje, a História repete-se. Em condições diferentes, mas com o mesmo sofrimento de quem sonhou com dias melhores e agora tem de regressar a um Portugal de novo mergulhado na incerteza.

Em busca de oportunidade, ou apenas do ganha-pão, muitos portugueses tiveram de abandonar Portugal e rumar a um território que só deixou de ser Portugal contra a vontade popular e através de conspirações sinistras. Tal como Angola, também Portugal foi pessimamente gerido nos últimos 40 anos, culminando em três humilhantes bancarrotas. Ao contrário de Angola, Portugal não tem acesso às riquezas naturais da antiga Província Ultramarina, e que abasteceram Angola de dólares com abundância. Em 2012, o PIB nacional chegou a regredir mais de quatro por cento, e o desemprego ultrapassou os 15 por cento, enquanto Angola vivia um momento de grande expansão económica. Muitos portugueses fizeram as malas, e muitas empresas embrulharam os seus produtos, e partiram à aventura, que está agora a redundar em desastre.

Dinheiro sem valor

A queda abrupta do preço do petróleo lançou os sinais de alerta, mas foi o fim do fornecimento de dólares americanos que condenou a situação dos trabalhadores e das empresas portuguesas. Os principais bancos dos Estados Unidos pararam de vender dólares a Angola quando a reserva federal sinalizou o país como sendo um local de passagem de dinheiro que teria como destino o Estado Islâmico. A regulação bancária do regime do MPLA é um pouco como a sua gestão do interior do país: simplesmente não existe, na prática.

O pagamento em kwanzas, a moeda oficial de Angola, equivale quase a não se ser pago, visto que apenas tem valor dentro do país, onde dificilmente pode ser trocado, e onde cada vez compra menos bens. Isto quando os compra, pois muito do comércio é feito exclusivamente com moeda forte.

Muitos dos “retornados” da década de 70 hão-de recordar agora, a propósito, o momento dramático em que o Banco de Portugal unilateralmente determinou que o escudo angolano não era conversível em escudo português, excepto em quantidade extremamente reguladas (e pequenas). Hoje, os bancos não trocam kwanzas por dólares, ou euros, não por ordem política, mas sim porque não os têm.

Muitas instituições limitaram os câmbios, quando são sequer possíveis, a 1.000 dólares (cerca de 900 euros) por semana. Este limite irrisório, para um empresário ou uma empresa, é catastrófico. Para os trabalhadores, o limite é, na prática, muito mais baixo, pois os dólares desaparecem dos bancos mal chegam, sendo que as filas se começam a formar horas antes da abertura da caixa. A maioria das casas de câmbio oficiais já apenas vendem moeda forte a quem tem um bilhete de avião, comprovativo de que vai viajar. Já não são poucos os casos de portugueses que tentam comprar bilhetes de avião com kwanzas, o que é quase impossível, apenas para conseguirem obter alguns dólares.

Por um punhado de dólares

Outros portugueses, em desespero, recorrem às “kinguilas”, pessoas que negoceiam moeda de forma ilegal nas ruas de Angola. O problema é que a taxa de câmbio é tão elevada que os ordenados dos portugueses podem passar de confortáveis a miseráveis em meros segundos. Isto quando o dinheiro trocado não é falso. Mas mesmo esta fonte começa a ficar ameaçada, e as próprias kinguilas admitem aos jornalistas vir a ficar sem emprego por estarem a ficar sem produto para vender.

Presos aos kwanzas com que são pagos, os portugueses vêem o seu dinheiro a desvalorizar rapidamente. Desde o início da crise do petróleo, o kwanza já desvalorizou de forma radical. No final de 2014, cerca de 100 kwanzas ainda compravam um dólar. Hoje, a mesma quantia já só compra 60 cêntimos, uma desvalorização de 40 por cento em pouco mais de um ano. No entanto, este é o valor oficial: nas ruas, onde uma grande parte, se não mesmo a maioria, das transacções está a decorrer, 100 kwanzas nem 20 cêntimos de dólar conseguem comprar.

Muitos portugueses acabarão por ter de deixar grande parte do seu dinheiro em Angola, ou então perderão uma enorme fatia dele quando o regime do MPLA decidir emitir toda uma nova moeda para substituir a antiga, algo que países sem estabilidade económica acabam sempre por fazer. Para os “retornados” originais, a nova crise de moeda pauta-se pela similaridade com a antiga.

Sem ordenado e de regresso

Segundo o Observatório da Imigração, existem 126 mil portugueses oficialmente registados como residentes em território angolano, o valor mais alto desde que Angola foi entregue ao MPLA. O valor real, como muitos escolhem não se registar nos serviços consulares, é geralmente estimado em 200 mil.

Seja qual for o valor, uma parcela significativa está a passar por dificuldades, sendo que o sector da construção civil é o que está a ser mais afectado devido ao cancelamento de muitas das chamadas “obras de regime”. No início do ano, o Sindicato da Construção Civil afirmou que existiam 80 mil trabalhadores portugueses em Angola com os ordenados em atraso. Este é um dos sectores económicos que têm vindo a ser mais martirizados na última década. Só em 2013, durante o pico da crise, a produção do sector caiu 15 por cento em Portugal, e a Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas e Serviços (AECOPS) afirmou que só nesse ano se perderam 200 mil postos de trabalho em Portugal. Angola era uma alternativa: em 2014, cerca de 63 por cento do volume de negócios internacionais das construtoras portuguesas provinha de Angola, algo como 3,6 mil milhões de euros.

No entanto, muitos dos trabalhadores estão a optar por abandonar o antigo território português, mesmo que 40 por cento tenham já seis ou mais meses de ordenados em atraso. Estima-se que nos últimos três meses já regressaram cerca de 10 mil trabalhadores da construção civil, num universo de 20 mil portugueses que decidiram abandonar novamente o território desde o início do ano. Há uma grande probabilidade de que este valor aumente ainda mais, tendo em conta a entrada do FMI em Angola.

As remessas revelam a escala do problema: em 2015 diminuíram 16 por cento. Em Janeiro deste ano apenas foram enviados 1,7 milhões de euros, uma descida de mais de 26 por cento em relação ao ano passado.

Mas os portugueses estão a saltar da panela para o fogo. Na antiga Metrópole, as contas também estão desorganizadas, e a frente de esquerda (da qual faz parte um dos partidos que mais responsabilidades tem por entregar Angola ao MPLA sem consulta popular) não está a conseguir controlar uma crise que volta a agudizar-se.

António Costa já admite um plano B, que irá envolver mais um brutal aumento de impostos, e o desemprego continua elevadíssimo. Nos anos 70 do século passado, os “retornados” arregaçaram as mangas e reconstruíram a vida com enorme dificuldade. Mas esse era o Portugal que vivia anos de crescimento rápido graças ao dinheiro fácil de Bruxelas que nos condenou à estagnação, tal como o petróleo condenou Angola à crise.

[td_text_with_title custom_title=”A Angola que podia ter sido”]Imagem Novos Retornados 2

Em 1973, segundo um relatório do Banco Mundial, Angola tinha cinco milhões de habitantes e um Produto Nacional Bruto (os PIBs só começaram a ser contabilizados mais tarde) de 2,7 mil milhões de dólares, valor comparável com alguns países europeus. Em termos de PNB per capita, era um dos territórios mais ricos do continente africano com um valor de 380 dólares. Em comparação, o Brasil tinha um PNB de 460 dólares. A taxa de crescimento estimada entre 1960 e 1971 era de 3,9 por cento ao ano, um dos valores mais elevados de África.

Em 1973, Angola era o terceiro maior produtor do mundo de café. Entre 1960 e 1972, a mineração de diamantes duplicou e a mineração de ferro aumentou mais de 600 por cento: de 660 mil toneladas, para 4 milhões de toneladas.

Em 1972, os derivados do petróleo apenas representavam cerca de 5 por cento da economia, ao contrário dos 20 a 40 por cento de hoje. As três indústrias mais importantes eram a da alimentação, a têxtil e a dos produtos químicos. A produção de tabaco representava 5 por cento da actividade económica da província ultramarina, tanto como o petróleo.

O investimento era claramente enorme: entre 1962 e 1972 o investimento em máquinas aumentou 17 mil por cento, enquanto o investimento em material de transporte aumentou “apenas” 2,5 mil por cento. Até mesmo os valores mais modernos, como o crescimento do investimento na indústria do tabaco, eram enormes. Neste caso em particular, aumento 88 por cento. Em 1972, as indústrias transformadoras representavam 10 por cento do produto económico angolano: 10 milhões de contos.

Todo este desenvolvimento nascente foi desbaratado. O que não foi destruído foi roubado nos últimos 40 anos. Angola não se cumpriu.

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