O jornal “Público” publicou recentemente uma importante entrevista de Marcelo Rebelo de Sousa conduzida por Maria João Avillez. A importância da entrevista reside principalmente na oportunidade de repensar uma parte relevante da história portuguesa desde o 25 de Abril até hoje e, porventura, as causas do nosso atraso histórico, bem como o papel de Marcelo e Guterres, os dois meninos de ouro do regime, como são retratados na entrevista.
Devo dizer que hesitei em avançar com a feitura deste artigo e com uma primeira avaliação deste quase meio século da política portuguesa, forçosamente polémica, só decidindo avançar porque penso mais ninguém o fará por ser desagradável. Faço-o porque tive a sorte de ao longo da vida e depois dos meus pais, só depender de mim próprio e não de vontades alheias.
Durante a entrevista, o Presidente da República dedicou as honras da casa a António Guterres, com a justificação de o Secretário-Geral das Nações Unidas ser melhor do que ele, afirmação feita por mais do que uma vez. A certo ponto diz o seguinte: “Porque ele era o melhor. E, de resto, há dias escrevi isso mesmo, quando me pediram um depoimento a propósito da sua reeleição para a ONU. E como era assim que eu o via, olhava-o naturalmente como melhor do que eu. O António tinha, aliás, muito mais gente próxima dele do que eu tinha gente próxima de mim, e também nesse sentido existia uma supremacia”.
Caminharam juntos, diz Marcelo, com uma forte relação de amizade desde o início dos anos setenta, fruto da formação católica de ambos e das preocupações sociais que marcam o percurso dos dois. Não sei medir o grau de sinceridade destas afirmações de Marcelo, “com a verdade me enganas”, diz o povo, mas é inegável que ambos são inteligentes, cultos, socialmente activos e com toda a probabilidade, vá lá saber-se porquê, são os dirigentes políticos do nosso tempo mais admirados pelos portugueses.
Ainda sobre Guterres há uma frase de certo realismo na entrevista que coloca a questão no ponto que me incentivou a avançar com o texto. Diz Marcelo: “Há uma outra marca distinta que é, repito, a aproximação às pessoas. Guterres conseguiu uma aproximação às pessoas como nenhum outro líder até aí. Nem mesmo Mário Soares. E para quê?” Neste ponto Maria João Avillez perguntou o óbvio: “– …está também a pensar em si?”.
Ambas as perguntas ficaram sem resposta. Para quê? É a questão e o início da minha tese de que ambos, apesar de todas as suas qualidades, da inteligência e da sensibilidade social que os caracteriza, pouco ou nada de muito singular fizeram pelo País e no caso de Guterres pelo mundo, como Secretário-Geral da ONU.
Nenhum deles tem comparação com Mário Soares, que lutou contra o anterior regime, lutou e venceu a batalha pela democracia, que com erros ou sem erros levou a cabo a descolonização e conduziu Portugal até à União Europeia. Foi até o estadista que meteu o socialismo na gaveta quando isso se tornou necessário para salvar Portugal. Mário Soares cumpriu tudo aquilo a que se propôs e o que fizeram por Portugal Marcelo Rebelo de Sousa e António Guterres?
Tive a oportunidade de conhecer bem António Guterres, tenho ainda comigo a correspondência com as minhas críticas e propostas e com as suas desculpas. São papéis que recordam a sua falta de coragem para ir para eleições antecipadas; para pedir a maioria eleitoral; a traição a que votou os socialistas no caso da interrupção voluntária da gravidez, quando cedeu a Marcelo o referendo; o orçamento do queijo; Pina Moura como ministro das Finanças e da Economia; José Sócrates, Armando Vara e outros criadores do pântano de que ele fugiu; a venda da GALP à ENI, contra a vontade dos sócios portugueses, e o seu perdão dos impostos; a política de betão que criticara a Cavaco Silva; a construção anárquica na periferia das cidades; os estádios de futebol; a corrupção. Quando na Comissão Política do PS o confrontei com algumas destas questões, atirou ao ar os papéis que tinha à sua frente, mas nada fez.
O rendimento mínimo garantido e a tentativa de colocar o ensino pré-escolar com a dimensão e a qualidade necessárias são as duas coisas que recordo como positivas, ainda que principalmente como medidas de generosidade social e não como políticas de Estado destinadas a educar e a desenvolver todas as capacidades dos portugueses e a transformar pobres em trabalhadores produtivos. Foi um modelo social assistencialista, que deu o peixe em vez de ensinar a pescar, modelo que ainda hoje impede a aproximação de Portugal aos outros países da União Europeia.
Deixarei uma análise equivalente do Presidente da República para o fim do seu mandato. Mas com o que sei hoje, não tenho dúvida de que com todas as suas qualidades, Marcelo Rebelo de Sousa e António Guterres iludiram as expectativas dos portugueses e nada têm a ver com Mário Soares. Lamento-o, porque, infelizmente, nunca fui um soarista e António Guterres foi o maior erro de julgamento que fiz na minha vida política, durante e depois dos Estados Gerais para uma Nova Maioria, quando acreditei que seria o homem certo para mudar Portugal.
Para que fique escrito, a minha desilusão com António Guterres nada teve a ver com a obtenção de lugares, como alguns militantes do PS tentam desvalorizar as minhas críticas ao partido, o que está suficientemente documentado nos jornais da época. De facto, António Guterres teve todas as condições para mudar Portugal, para inaugurar uma nova decência na política portuguesa e para ultrapassar alguns dos erros herdados de Cavaco Silva. Infelizmente, sou hoje forçado a admitir que o seu serviço por Portugal ficou longe dos dez anos de Cavaco Silva como primeiro-ministro e para o julgar basta comparar os números que não enganam, ou voltar a ouvir Henrique Medina Carreira.
Não há líderes perfeitos, nem mesmo os maiores são isentos de erros, de omissões e de fraquezas. Mas todos os verdadeiros líderes, os estadistas do seu tempo, são os que sabem antecipar o futuro e se dedicam a construir os seus alicerces. Sá Carneiro talvez tivesse as condições para ombrear com Mário Soares, mas morreu demasiado cedo. O general Eanes e Jorge Sampaio cumpriram com honra e elevada dedicação a Portugal a sua passagem pelo poder político. Finalmente, Álvaro Cunhal, que poderia ter sido quase tudo, esteve perto de antecipar José Sócrates a desgraçar Portugal.
De uma forma simplista, poderemos dizer que o quase meio século da democracia portuguesa se pode dividir em duas metades. Uma primeira metade em que aprendemos a andar e que apesar dos erros cometidos e das lutas havidas, Portugal avançou. Tivemos depois uma segunda metade em que a democracia regrediu, a economia estagnou e em que os políticos chegados ao poder não estiveram à altura da dimensão dos desafios que se colocaram a Portugal. Agora, tudo o indica, vamos terminar esse meio século pior do que antes, sem glória e sem honra, porque a corrupção e o jogo sujo dos interesses individuais do presente crescem à custa do futuro da generalidade dos portugueses e tomaram, pouco a pouco, o controlo do País.
Para um homem inteligente como Marcelo Rebelo de Sousa, é obra. ■