O grupo social cuja moral e ética de trabalho conduziu o Ocidente à modernidade, a classe média, está em franco declínio, substituída por uma gigantesca aglomeração de novos pobres e uma micro-elite de muito ricos. O perigo é a estagnação social, cultural e mesmo económica.
Definir a “classe média” é uma obra difícil, visto que o conceito muda de nação para nação. Mas está geralmente aceite que uma pessoa de classe média vive confortavelmente, com acesso a bens materiais suficientes para não passar por privações. As pessoas desta classe vivem geralmente do seu trabalho e valorizam a educação, a segurança, a cultura e a família. São auto-suficientes, não necessitando de apoios constantes do Estado, ao mesmo tempo que estão dispostas a manter uma rede de segurança para quando alguém cai em situação de desgraça súbita. Foi este o grande consenso do pós-guerra, que avançou e recuou em todos os países desenvolvidos.
A expansão da qualidade de vida na Europa e na América do Norte significou que a maioria dos trabalhadores passou a poder ser incluída na categoria “classe média”, sendo esta subdividida até em média alta, média e baixa.
O avanço de postos de trabalho cada vez mais especializados, bem como das profissões liberais, conduziu em grande escala ao colapso do marxismo, que pouco mais via no mundo do que “operários e camponeses”. Por volta dos anos 80, a maior parte dos europeus e norte-americanos vivia em condições confortáveis e em prosperidade. Nos anos 90, até mesmo os portugueses tiveram a oportunidade de beneficiar um pouco da tão apregoada “qualidade de vida”.
Mas essa “qualidade de vida” está a desaparecer: os pobres estão mais pobres, os ricos muito mais ricos, e a classe média a ser erradicada.
Retrocesso
No nosso País, o total de pessoas que estariam em privação material caso não recebessem apoios do Estado é 44 por cento. Resumidamente, quase metade dos portugueses é, para todos os efeitos, pobre. A profunda crise económica que Portugal sofreu após a bancarrota do governo de José Sócrates exterminou as poupanças e as posses de muitos. A subida drástica do desemprego tirou a milhares de pessoas a possibilidade de terem uma vida auto-suficiente e próspera. Chegámos a ter 19 por cento da nossa força de trabalho sem emprego, incluindo quase metade dos jovens qualificados.
Cinco anos após o choque das políticas socialistas com a dura realidade a pobreza persiste: o desemprego continua na casa dos 13 por cento, e esse valor é de dúbia confiança, visto que muitos dos “empregos” são estágios financiados pelo Estado. Aliás, segundo várias fontes, 7 em cada 10 empregos criados nos últimos anos são estágios.
As gerações antigas sonhavam deixar um Portugal melhor para os filhos e para os netos, mas os portugueses de hoje já não sonham, nem têm capacidade para o fazer. Os jovens que por cá ficam são obrigados a aceitar ordenados de 500 euros, valor que se está a transformar rapidamente no ordenado mediano nacional.
Mas em toda a Europa o cenário é similar. Até mesmo em países ditos ricos, como a Bélgica ou a Alemanha de Merkel, instalou-se a “geração 1.000 euros” – um salário que, nessas terras de custo de vida mais elevado, para pouco chega. Trabalho precário é a norma.
Mas as fantasias vão sendo alimentadas, tal como os milhares de postos de trabalhos na informática que foram prometidos para um futuro “próximo”, ao mesmo tempo que os informáticos se queixam de maus ordenados e más condições de trabalho. Como ficou patente na recente reportagem do nosso director, Duarte Branquinho (“Crise e lucro: as duas faces da Alemanha”), é inteiramente possível a enorme criação de riqueza conviver lado a lado com a miséria. Nessa reportagem, até um engenheiro admitia ter ficado desempregado, o que não é, de facto, algo que se associe à Alemanha que Merkel considera como um exemplo para a Europa e o mundo.
Derrota das ilusões
Mas a velha Alemanha, aquela em que os sindicatos, os trabalhadores e os patrões eram aliados e não inimigos (com efeitos tão positivos vistos em terras lusitanas na Autoeuropa), está a desaparecer, dando origem à Alemanha “competitiva” moderna. O mesmo se vê em toda a Europa.
Em 2009, 36 por cento da classe média mundial viviam na Europa e 18 por cento nos Estados Unidos. Estima-se que em 2020 (dentro de apenas cinco anos) esse valor terá caído para 22 e 10 por cento, respectivamente. E em 2030 o Ocidente terá sido completamente batido, tanto em termos demográficos como em termos económicos.
Segundo um estudo recente, entre 1988 e 2008 (um período de duas décadas) a classe média ocidental registou 0% – sim, zero por cento – de melhoria nos seus rendimentos quando se ajustam os valores à inflação. As elites, muito pelo contrário, viram os seus rendimentos subir 65 por cento durante o mesmo período, enquanto os rendimentos da classe média asiática cresceram 75 por cento.
A desigualdade no Ocidente disparou violentamente, estando quase situada em valores do tempo da Belle Époque, considerado um período, por excelência, de enormes disparidades entre rendimentos.
Os resultados do último quarto de século são uma pesada derrota para o modelo ocidental. E colocam tudo em questão.
Vem aí uma nova crise?
“Algumas pessoas vêem a iniciativa privada como um tigre predatório a ser abatido. Outras olham para ela como uma vaca que podem ordenhar. Não há suficientes pessoas a vê-la como um cavalo saudável, que puxa uma carroça forte” – afirmou Winston Churchill no pico da Grande Depressão (1929-1939). Um poderoso aviso àqueles que pensam poder salvar a economia através de esbanjamento e excesso de regulação, e também àqueles que querem sacar o máximo possível, e depois correr para o próximo alvo.
Tal como no tempo de Churchill, hoje assiste-se a um duplo assalto. A nível nacional, governos esbanjadores sugam quantidades astronómicas de dinheiro àqueles que trabalham, como os trabalhadores independentes no caso português, travando assim o crescimento económico. A nível internacional, temos o que muitos economistas já descrevem como um sistema financeiro desregulado e descontrolado, que conduziu o mundo “alegremente” à desgraça do colapso financeiro de 2008. Pouco foi feito desde então para impor alguma regulação, e há quem acredite que estamos a caminho de uma nova crise, esta com efeitos ainda mais profundos.
Que ordem mundial?
As “ordens mundiais” vão e vêm. Aqueles que pensam que a globalização é um fenómeno novo estão enganados, visto que no final do século XIX o mundo estava tão globalizado, se não mais em certos aspectos, do que hoje. Era inteiramente possível, nesses tempos, um cavalheiro europeu viajar pelas várias capitais da velha Europa sem precisar de vistos complicados. Muitas vezes nem um passaporte era pedido. A Marinha Real britânica controlava os mares, desempenhando o actual papel da Marinha dos Estados Unidos – papel que em tempos a Marinha portuguesa, a mais poderosa do mundo da sua época, desempenhou. Essa ordem entrou em colapso com a Grande Depressão e com a II Guerra Mundial. Da mesma forma, os regimes mercantilistas entraram em colapso para serem substituídos pelos ideais liberais do comércio livre, pondo fim a mais uma ordem mundial. Para já não falar da Revolução Francesa e das mudanças que ela trouxe a uma Europa aristocrática e ainda algo feudal. Nada dura para sempre.
A crise económica no Ocidente teve, para já, dois efeitos políticos imediatos: por um lado, partidos e ideologias que em tempos foram considerados “mortos” estão a ressurgir sob várias formas e feitios; por outro, aumenta a descrença no modelo liberal democrático ocidental, cujo sustentáculo era a classe média.
Novos modelos
Partidos como a Frente Nacional francesa, a alemã Alternativa para a Europa, o Partido da Independência do Reino Unido, o Syriza grego e o Movimento Cinco Estrelas italiano são geralmente vilipendiados pela classe política estabelecida, que não vê (ou não quer ver) as causas da súbita ascensão destas fórmulas “marginais” ou “alternativas”. O certo é que elas estão em crescimento, o que reflecte o enorme descontentamento daqueles que receiam que “amanhã já não vai ser melhor do que ontem”. Mesmo enquanto escavaca o país e o conduz ao abismo, o Syriza continua popular pela simples razão de que os gregos sentem que estão entre a espada e a parede. Não há nada mais perigoso do que o desespero.
Entretanto, vários países começam, perigosamente, a olhar para a China como um modelo. O triunfo do Ocidente na Guerra Fria tornou a democracia o “modelo-base” único do desenvolvimento e conduziu a falhas de análise que podem sair-nos caras. Os norte-americanos chegaram a acreditar que o desenvolvimento económico da China iria conduzir esse país à liberdade. Erro crasso: o regime de Pequim, mesmo rodeado de miséria, poluição e desigualdade, continua forte. Pior, o enorme crescimento que conseguiu sustentar, embora em decrescimento, permitiu-lhe começar a afirmar-se também como “exemplo mundial”. Tal como nos anos 20 e 30 do século XX, a possibilidade de as “vitórias democráticas” das últimas décadas recuarem é perfeitamente real, e receada por muitos especialistas.
Restaurar o futuro
O economista social-liberal Paul Krugman, no seu livro “A Grande Compressão”, associou o desenvolvimento económico dos EUA nos anos 50 à enorme quantidade de dinheiro que as classes médias detinham nesse período. Os empregos eram bem remunerados, os impostos eram baixos para os pobres, razoáveis para a classe média e médios para os ricos, que por sua vez se encontravam regulados e impedidos de andar a “saltitar” de país em país.
O economista assinalava que a riqueza do seu país, e de muitos outros países, nunca foi maior do que no período em que todos tinham capacidade de consumir e viver com dignidade. Krugman, ao contrário dos socialistas, não defende a igualdade total, que considera impossível e até indesejável, mas sugere que o Estado e as Nações devem intervir para acabar com a actual situação.
Infelizmente, no nosso caso, a União Europeia continua a funcionar como uma galinha sem cabeça, e os vários Estados europeus andam a toque de caixa. A classe política, fossilizada e distante das preocupações daqueles que diz representar, está cada vez está mais descredibilizada e sem capacidade de liderança.
Ou se começa a pensar em restaurar o poder da classe média do Ocidente, ou então as consequências futuras serão graves. Afinal, como se costuma dizer: “não é possível ter-se democracia num país com fome”.