Sobre esqueletos e armários

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 Luísa Venturini

Todas as vidas têm muitas histórias. Umas boas para recordar às lareiras dos nossos e que nos aloiram o coração, outras boas para deixar que o oblívio as apague, de tal modo nos enegrecem a alma e acabrunham o espírito. E mesmo quando não somos exímios nessa faculdade do esquecimento, por vezes conseguimos colocá-las mais do que à distância do tempo, à distância do patamar em que nos somos hoje, à distância do mundo em que nos habitamos hoje, mesmo com os seus ontens e amanhãs. E o tempo passa e nós quase acreditamos na nossa verdade reconstruída, impossibilitados que estamos de continuar a viver, ou a deixar viver, se essas tais histórias perversas continuassem a pertencer ao nosso quotidiano.

Só que, às vezes, por um malabarismo das circunstâncias, como esqueletos a saltarem dos armários, essas histórias encolhem cruelmente todas as distâncias e caem-nos em cima, com todo o espalhafato, como se acabadas de ocorrer. Nenhuma cicatriz resiste, nenhum escudo funciona, nenhuma estrutura fica ilesa. O sentido cénico aperalta-se, algo viciosamente, com o factor surpresa, tão indispensável a determinadas tramas. E aí o cataclismo no presumível alvo é praticamente inevitável.

É muito difícil coabitar com a falta de vergonha e com a incapacidade de respeito que molda a natureza de algumas pessoas. Tenho dado comigo, ao longo dos anos, a ter eu vergonha por elas e a poupar-lhes embaraços, fiada que algum resquício ético possa assomar-lhes à consciência. Geralmente, a minha lúcida generosidade é tomada por tontice e eu encolho os ombros, convicta de que não podem nem sabem mais. Mas, fatidicamente, quando uma dessas tais histórias salta no tempo para se manifestar no hoje, chega o momento de dizer basta, porque, nessa aterragem, chegam-nos à tona todas as mentiras em que fingimos acreditar para evitar embaraços e outras penas, todos os dolos que nos roubaram o futuro e a alegria, todas as facturas que tivemos de pagar à conta daquelas que nunca nos pagaram.

A vida prepara partidas e podemos dar connosco prontos a defender, nem que seja com desgosto, o respeito que nos temos. Caríssimo pode ser o preço. O pior, porém, será verificar a inutilidade do gesto. De facto, como diria o Chico, “o que não tem vergonha nem nunca terá” e nós a correr o risco de parecer, se não mesmo concluir, que somos nós “o que não tem juízo”.